Raimundo Nonato Santos de Sousa


MOBRAL: INSTRUMENTALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PELO ESTADO


                                                               

O presente texto tem por objetivo tratar sobre o Movimento Brasileiro de Alfabetização [MOBRAL], destacando seus princípios ideológico e pedagógico, assim como sua relação com a Ditadura civil-militar brasileira [1964-1985]. Para tanto, se fez necessário inicialmente analisar o contexto histórico em que tal programa foi implantado no Brasil, qual seja, a época em que os militares assumiram a Presidência do País. O procedimento metodológico empregado na escrita desse texto consistiu em uma revisão de literatura, em que foram privilegiados autores que discorrem sobre esse tema, a exemplo de Beluzo e Toniosso [2015], Coelho [2007] e Coleti [2010].

Com os resultados adquiridos no levantamento bibliográfico, foi possível concluir que ainda que o MOBRAL possuísse, em tese, como objetivo primordial proporcionar a alfabetização de pessoas adultas em um curto período de tempo, ele foi, na realidade, usado pelo regime ditatorial como meio de alcançar interesses políticos. Esse observado sugere o caráter alienante da educação brasileira no período e ainda indica que a educação pode ser instrumentalizada a serviço da manutenção da ordem política. Tratar sobre esse assunto nas aulas de história é importante para proporcionar reflexões sobre a relação entre a educação e a política na sociedade brasileira.

Problema do analfabetismo no Brasil
Para que se possa compreender a dimensão e os efeitos do Movimento Brasileiro de Alfabetização [MOBRAL], assim como seus objetivos faz-se necessário realizar uma contextualização histórica acerca da criação desse programa, partindo de um assunto correlato à sua atuação, a saber, o analfabetismo.

Desde o período colonial, o analfabetismo existe no Brasil, ainda que ele tenha sido encarado como um problema somente no final do século XIX, com o fim do Império. [SAVIANE, 2008] Nessa perspectiva, o analfabetismo, inicialmente, foi considerado como um problema de ordem política, em virtude das leis vigentes no Brasil na época que impediam os analfabetos de votar. 

Mesmo que o analfabetismo fosse considerado um problema grave, ele sobreviveu ao transcorrer do tempo, visto que nenhuma medida efetiva foi acionada para saná-lo. Assim, na segunda metade do século XX, durante a ditadura civil-militar brasileira [1964-1985], o analfabetismo ainda era visto como um problema social, sendo notadamente neste momento enxergado também como um potencial gerador de crises nos âmbitos econômico, social e cultural do País. [HADDAD, 1991]

Assim, o analfabetismo era tratado como um dos fatores que poderiam travar o desenvolvimento do Brasil. Em consequência disso, os analfabetos passaram a ser vistos, pejorativamente, como travas ao progresso econômico, social e cultural do País, uma vez que eles não seriam, como se pensava, capazes de decidir, através do voto, por exemplo, o futuro da sua própria nação.

A partir disso, percebe-se o quão grande era a necessidade de proporcionar instrução básica à população brasileira, haja vista que era apregoado que o desenvolvimento socioeconômico do País dependia de uma nação minimamente escolarizada. Por esse motivo, o governo brasileiro se sentiu impelido a dar início à criação de um programa que pudesse realizar tal empreendimento.

Nesse sentido, é importante destacar que antes da criação do MOBRAL existiram no Brasil outras campanhas que tinham como objetivo erradicar o analfabetismo, a exemplo da Campanha de Educação de Adultos e Adolescentes e da Campanha Nacional de Educação Rural. [COLETI, 2010] Entretanto, aqui será dado destaque à atuação do MOBRAL no enfrentamento de tal situação.

Ditadura civil-militar brasileira [1964-1985] e a criação do Mobral no Brasil
Após a queda do governo de João Goulart [1961-1964], o comando político do Brasil passou para as mãos dos militares, através do golpe militar aplicado no dia 31 de março de 1964 e legitimado pelo Congresso no dia 2 de abril do mesmo ano. De imediato, ocorreram mudanças significativas nas estruturas do País, advindas das políticas implantadas pelos novos dirigentes do Executivo brasileiro.

Nesse contexto, a educação foi um dos setores que mais sofreram em razão da mudança política, uma vez que a partir de 1964 passava a existir no Brasil uma intensa pressão e perseguição àquelas pessoas que não concordavam, em parte ou integralmente, com as imposições feitas pelo regime civil-militar. Todos aqueles que demonstrassem resistência e dificuldade em aceitar passivamente essas imposições poderiam ser severamente perseguidos e, consequentemente, punidos. Os militares, de fato, se preocupavam em silenciar tudo que pudesse representar uma ameaça em potencial para a estabilidade política do seu regime governamental. Em função disso, a educação brasileira, nessa fase da história do Brasil, passou a apresentar um forte caráter alienante que incentivava obediência e sujeição ao sistema político então vigente.

Foi nesse período de perturbações, restrições e supressão de liberdades, que o Movimento Brasileiro de Alfabetização [MOBRAL] foi criado – oficialmente no ano de 1967 durante o governo de Artur da Costa e Silva [1967-1969] -, possuindo, em tese, como objetivo primordial dirimir o analfabetismo entre a população adulta brasileira. Tendo em mente que o MOBRAL surgiu no contexto do regime militar, pode-se notar que a criação desse programa se tratou de um reflexo do controle da educação pelos militares. Com efeito, percebe-se também que o caráter político-ideológico do MOBRAL se evidencia no próprio contexto em que ele foi criado.

O MOBRAL não começou a funcionar logo após a sua criação, por causa da falta de recursos financeiros que pudessem custear os gastos gerados pelo seu funcionamento. Por causa disso, ele só iniciou suas atividades na década de 1970, ou seja, três anos depois de ter sido criado. Durante o período de vigência do MOBRAL, entre os anos de 1970 e 1985, a educação de jovens e adultos tinha como ponto focal a promoção do ensino da escrita, da leitura e de algumas operações matemáticas. Tal ensino não apresentava, portanto, uma preocupação voltada para a formação cultural dos indivíduos. E o que explica isso é o fato de que a educação estava, à época, completamente sujeita aos interesses do sistema político então em voga. [COELHO, 2007]

A criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização serviu teoricamente para demonstrar a preocupação do governo com a educação do País. Esse programa apresentava como seu público-alvo as pessoas com idade entre 15 e 30 anos. [HADDAD, 1991] Esse detalhe da idade do público-alvo ao qual se destinava as atividades do MOBRAL é interessante, pois sugere que as pessoas dessa faixa etária poderiam ser aproveitadas pelo mercado de trabalho. Isso aponta afirmativamente para o fato de essa ser uma das preocupações do MOBRAL em resposta às demandas geradas pela industrialização do Brasil. [BELUZO; TONIOSSO, 2015]

Cabe ainda salientar que o MOBRAL se originou em um contexto efervescente de debates sobre alfabetização. [HADDAD, 1991] Nesse período, todas as nações que faziam parte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [UNESCO], foram incentivadas a intensificarem os seus esforços no combate ao analfabetismo em seus respectivos territórios. [HADDAD, 1991] Assim, realizar investimentos na educação foi um meio usado pelo governo brasileiro para, a um só tempo, satisfazer as pressões externas advindas da UNESCO e propiciar um crescimento econômico no País.

Como se disse, desde a sua criação o MOBRAL enfrentou problemas de ordem econômica; e isso reverberou na qualidade do seu funcionamento. Dada essa dificuldade, o MOBRAL não tinha condições de realizar tudo que era alardeado pelos seus idealizadores, como por exemplo, eliminar o problema do analfabetismo existente desde há muito no País. [SILVA et al. 2013]

Ainda que o MOBRAL disseminasse um discurso que afirmava que o seu público-alvo constituía-se de adultos, isto é, de pessoas que já possuíam uma consciência formada sobre a sua realidade circundante, esse programa, na verdade, se concentrava em trabalhar com jovens. [HADDAD, 1991] Conforme Ribeiro [1992], aproximadamente 60% daqueles que foram alfabetizados pelo MOBRAL eram jovens com menos de 20 anos de idade. Por certo, a razão que explica isso está umbilicalmente relacionada com a necessidade da ditadura civil-militar legitimar sua atuação perante a opinião pública. Logo, ganhar a aprovação dos jovens, mesmo que isso envolvesse aliená-los, era fundamental para a manutenção da ordem política da sociedade da época. Como consequência, nesse período o ensino se revestiu de uma feição essencialmente tecnicista, buscando ressaltar as qualificações ligadas à produtividade e a formação de trabalhadores e de trabalhadoras.

Como fora dito, teoricamente seria objetivo do MOBRAL promover a alfabetização a um público adulto, que por algum motivo não teve acesso à escolarização. Isso é apoiado por Correa [1979], de acordo com o qual o MOBRAL objetivava ofertar a:

 “Alfabetização funcional [...] e permitir que adolescentes e adultos carentes de instrução apliquem, de forma prática e mediata, as técnicas que os habilitem a ler, escrever e contar, capacitando-os assim a melhorar suas condições de vida [...]”. [CORREA, 1979, p. 67]

A implantação de um programa capaz de ter uma atuação a nível nacional na promoção da alfabetização como o MOBRAL encontra justificativa na necessidade de produzir mão-de-obra disponível para o mercado produtivo da época. Pois, na década de 1970, em função do êxodo rural, grandes contingentes de pessoas saíam do campo e rumavam em direção às cidades necessitando assim de escolarização para serem absorvidas pelo sistema produtivo.

A intenção dos idealizadores desse programa era o de expandi-lo por todo o Brasil, razão pela qual se dava destaque à construção discursiva de que o MOBRAL iria acabar com o analfabetismo no País. Tal discurso foi inclusive usado como meio de obter financiamento de empresários, porque se houvesse menos analfabetos, como se argumentava, mais pessoas estariam equipadas para ingressar nas atividades produtivas do mercado de trabalho, o que resultaria em crescimento na economia.

Assim sendo, combater o analfabetismo era necessário, porque ele era visto como um inimigo do progresso socioeconômico da nação. Isso nos fornece sedimentos para afirmar que durante a ditadura, a política educacional no País apresentava um caráter econômico, dado que ela se preocupava em formar não sujeitos críticos, mas sim mão-de-obra minimamente capacitada para o mercado de trabalho.

Dessa maneira, com a qualificação da mão-de-obra proporcionada pela escola e com a inserção desses indivíduos no mercado de trabalho, pretendia-se elevar os índices de crescimento econômico do País. E era por esse motivo que a educação não buscava contemplar a formação reflexiva dos educandos, mas sim instruí-los para torná-los capazes de realizar algumas poucas atividades que seriam úteis à economia da sociedade. Também, chama atenção o fato de a escola, na época, se preocupar em ensinar as pessoas a escreverem o nome, para possibilitá-las conseguir o título de eleitor. [COELHO, 2007]

Nessa perspectiva, para que o Brasil pudesse se desenvolver ao ponto de se tornar uma grande potência, eliminar o analfabetismo era o principal alvo a ser atingido pelo poder político. Então todos deveriam se engajar nesse projeto, uma vez que um País alfabetizado seria equivalente a um País desenvolvido.

Ideologia impregnada no MOBRAL
Além da criação do MOBRAL ter se dado na época de um governo militar, como foi dito anteriormente, outro indicativo que mostra o princípio ideológico deste programa foi o episódio do afastamento de Terezinha Saraiva que atuava, desde o ano de 1972, como assessora do então diretor do MOBRAL, Arlindo Lopes Correa. Terezinha Saraiva foi afastada por ter contestado a maneira como as atividades do MOBRAL estavam sendo executadas. [COELHO, 2007] A não aceitação do contraditório nesse ocorrido expõe a essência política do programa.

No período em que atuou, o MOBRAL foi usado como meio de legitimação do regime político da época. Por isso, pode-se dizer que tal projeto foi usado como propaganda política com o objetivo de demonstrar o suposto “interesse” e “preocupação” dos militares com as camadas mais desvalidas da sociedade brasileira.

A razão que nos ajuda a compreender a intervenção dos militares na política educacional está no fato de que eles reconheciam que a educação poderia produzir cidadãos simpatizantes e defensores do modelo político em vigor na época. Isso, sem sombra de dúvida, seria muito conveniente porque reduziria as possibilidades de manifestações de descontentamento em relação ao regime político dos militares.

Nesse sentido, cabe destacar a importância do material didático, enquanto ferramenta de difusão de ideias condizentes aos interesses de regimes políticos. Os livros e cartilhas usados no âmbito do MOBRAL eram distribuídos sem nenhum custo aos alunos e educadores que integravam o programa. [OLIVEIRA; SOUZA, 2013] Sabendo que parte dos recursos do MOBRAL era destinada à produção de tais materiais didáticos, não é difícil constatar que todos eles eram deliberadamente impregnados por elementos ideológicos favoráveis ao sistema de ideias do governo vigente [COLETI, 2010], que davam destaque a questões relacionadas com a comunidade, a nação, além de incentivar hábitos e atitudes baseados na moral cristã, atribuindo valores positivos à pátria, à família e à religião. [OLIVEIRA; SOUZA, 2013]

Nas cartilhas utilizadas, por exemplo, tinham-se imagens que enfatizavam o trabalho braçal - usualmente menos remunerado -, com o objetivo de difundir a ideia de que as pessoas que exerciam atividades que não exigem muito esforço cognitivo seriam responsáveis pelo desenvolvimento do Brasil. [OLIVEIRA; SOUZA, 2013] Com isso, desejava-se difundir a ideia de que todo trabalho era digno, sobretudo o braçal; e que, portanto, o aprofundamento nos estudos e a formação cultural dos indivíduos não seriam tão importantes. Isso serve de indicativo do forte caráter tecnicista da educação no período.


Considerações finais
Portanto, o que se pretendeu destacar neste texto foi que o Movimento Brasileiro de Alfabetização [MOBRAL] correspondeu a um programa que, apesar de ter como objetivo erradicar o analfabetismo no Brasil em um curto período de tempo, foi uma ferramenta usada para dar legitimidade à ditadura civil-militar e também para capacitar, minimamente, pessoas para o mercado de trabalho; prova disso é que o MOBRAL fracassou, não conseguindo atingir seu intento. Esse observado denuncia ainda que os proponentes desse programa ao oferecer uma educação de baixo nível pretendiam tornar as pessoas dele beneficiárias vulneráveis às maquinações políticas da sua época, visto que elas não poderiam se conscientizar da realidade em que se encontravam e nem tampouco se mobilizar para exigir mudanças. Logo, a experiência com o MOBRAL nos faz constatar que a educação pode ser instrumentalizada pelo Estado para fins políticos.

Referências
Raimundo Nonato Santos de Sousa – É acadêmico do oitavo período do curso de História na Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, campus Caxias. Atualmente, atua como pesquisador-bolsista PIBIC/UEMA e pesquisador-colaborador UNIVERSAL/FAPEMA.

BELUZO, Maria Ferreria; TONIOSSO, José Pedro. O Mobral e a alfabetização de adultos: considerações históricas. Cadernos de Educação: Ensino e Sociedade, Bebedouro-SP, 2015. [Artigo]
COELHO, Leni Rodrigues. [Re] Configurando e analisando o Mobral em Patos de Minas/MG [1970-1980]. UFU, 2007. [Livro]
COLETI, Laura Maria Baron. Do Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização] aos programas de EJA [Educação de Jovens e Adultos] atuais: evolução ou manutenção das práticas pedagógicas?, MG, 2010. [Artigo]
CORREA, Arlindo Lopes. Educação de Massa e Ação Comunitária. Rio de Janeiro; MOBRAL, AGGS, 1979. [Livro]
HADDAD, Sergio. Estado e Educação de Adultos [1964-1985]. São Paulo: Tese de Doutorado. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1991, 360 p. [Tese]
OLIVEIRA, Letícia Borges de; SOUZA, Sauloéber Társio de. A alfabetização no Mobral, métodos e materiais didáticos [Uberlândia/MG, 1970-1985]. Revista Eletrônica Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa, 7 [2013], 12-37. https: //doi.org/10.11606/issn.1980-7686.v7i13p12-37. [Artigo]
RIBEIRO, Vera Masagão et ali [1992]. Metodologia da educação: Pesquisa em educação de Jovens e Adultos. Campinas, São Paulo: Papirus, 1992. [Livro]
SILVA, Fabiana Regina da; VELÁSQUEZ,Cinara Dalla Costa; CORRÉ,Josiane Caroline Machado; CUNHA,Jorge Luiz. O movimento Brasileiro de alfabetização-Mobral no município de Frederico Westphalen-RS[1970-1975]. XI Congresso Nacional de Educação EDUCARE, Curitiba, 2013. [Artigo]
SAVIANI, Dermeval. Política educacional brasileira: limites e perspectivas. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 24, p. 7-16, junho 2008. [Artigo]

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