APONTAMENTOS SOBRE O PRIMEIRO DEBATE LITERÁRIO NO BRASIL
A Gazeta do Rio de
Janeiro (1813, p.4), órgão oficial da Corte portuguesa no Brasil, informava
que, na noite de inauguração do Real Teatro de São João, em 12 de outubro de
1813, foi apresentado o “drama lírico” intitulado O Juramento dos Numes, de D.
Gastão Fausto da Câmara Coutinho, à época, famoso escritor português, com
entreatos musicais do compositor régio Bernardo José de Souza e Queiroz
(BUDASZ, 2008, p.204). A data comemorava o aniversário de D. Pedro de
Alcântara, príncipe da Beira (daí a presença de toda a família real, da
“Nobreza” e “classes mais distintas”), e propiciava um momento único para a
monarquia manifestar seu apreço pelas belas letras.
A apresentação da peça
desencadeou uma crítica radical por parte de Manuel Ferreira de Araújo
Guimarães, editor do jornal O Patriota, em dois artigos complementares, que
constituem a face pública de uma intensa polêmica literária – a primeira que
surgiu em terras brasileiras (LEITMAN, 1974). Trata-se de evento (salvo engano)
ainda pouco estudado, conquanto sua enorme importância não apenas para as
práticas letradas do período, pois marcou certos contornos da aclimatação do
Iluminismo em terras brasileiras (FALCON, 2000, p.162; MARCHANT, 1961,
pp.95-118; MORAES, 2008, p.43s; PALLARES-BURKE, 2000), mas também para melhor
se desvelar o circuito institucional da ratificação e disseminação do poder
político, vale dizer, da boa gestão na prestação de serviços aristocráticos e,
em contrapartida, na retribuição por meio de mercês (KANTOROWICZ, 1984;
TEIXEIRA, 1999; HESPANHA, 1993).
Araújo Guimarães
afirmava, nas páginas de O Patriota (n.4, outubro 1813), que o drama escrito
por Câmara Coutinho não seguia as regras do decoro literário da época,
portanto, não seria digno de encenação nos palcos de um teatro patrocinado pela
realeza. Segundo o verbete “ópera”, escrito por Rousseau para a Enciclopédia,
dizia Guimarães, o poema lírico-dramático era espetáculo em que se reuniam
todos os encantos das belas artes numa ação apaixonada para despertar o
interesse e a ilusão a partir de sensações agradáveis. Seria o lugar
privilegiado em que se mobilizariam a energia de todos os sentimentos e paixões
(ROUSSEAU, 1817, p.263).
Nesse sentido, embora
a elocução poética possa ser variável (“susceptíveis de todos os estilos”),
isto não permite qualquer tipo de experimentação, pois “a locução rasteira he
vergonhosa na boca de huma divindade” (p.93). O estilo baixo ou humilde na voz
de personagem aristocrático é indecoroso, pois, conforme os preceitos do poeta
romano Horácio, a mistura de registros lingüísticos, além de literariamente
precária, fere a moral e os bons costumes. Dessa forma, Guimarães colocava em xeque,
no mínimo, a competência letrada de Coutinho e sua tão divulgada fama de
excelente escritor.
Não menos, Guimarães
acusava Coutinho de plágio: primeiro, a caracterização da personagem Vênus foi
mero arremedo dos cantos I-II de Os Lusíadas, de Luís de Camões; e segundo, a
parte introdutória e as profecias da Sibila estavam próximas por demais
daquelas descritas na Eneida, de Virgílio. A obra, então, seria uma mera
“estampa apagada de um belo quadro”, pois perdeu, nas mal traçadas linhas de
Coutinho, a força do texto original que se baseava na riqueza de detalhes e na
energia passional de seus quadros narrativos.
A conclusão é
certeira: “Não entreteremos mais o Leitor sobre hum Drama, que as Artes se
empenharão em avultar” (p.93). No Dicionário da Academia das Ciências de
Lisboa, “avultar/aviltar” significa “envilecer”, “desprezar”, “tratar como
vil”, esclarecendo que o âmbito deste vocábulo recobre o campo ético, ou seja,
do “vício vil”, com repercussão no campo político, pois o governante que se vale
da “prudência” não se “avilta” por se orientar pelo conselho e pelos préstimos
dos “sábios”. E o filho “se mostra mais honrado”, quando cumpre seu dever de
por “amor de servir” a “seu pai”. O “avillanado” (o homem que se torna vil) é
“grosseiro” e “rústico” (1793, p.522).
Isto, porque a
sociedade de Corte, que se opunha ao povo e para a qual se destinavam as obras
literárias e todas as cerimônias institucionais da monarquia, incluindo aqui
todo o debate o sobre o bom uso da linguagem, fundamentava-se na concepção de
que cada um ocupava um lugar específico na hierarquia social, cuja constituição
era estritamente doutrinada por códigos de comportamento e por uma lógica de
precedências. Assim, o pior de todos os vícios morais era não viver segundo seu
pertencimento hierárquico ou se apropriar de símbolos distintivos de outro
nível social. Nada mais desprezível do que um burguês (mesmo enriquecido) se
passar por um membro da nobreza, ou, como lembrava Molière, um “villaõ
enfrunhado em Fidalgo” (1769, p.115).
Guimarães haveria de
voltar à carga, em outro artigo de O Patriota (n.1, janeiro-fevereiro 1814),
quanto ao problema do enquadramento formal da obra literária de Coutinho. Para
ele, o “poema lyryco” é um “espectaculo em Musica”, sinônimo de “Opera”, conforme
já dizia anteriormente, cujo núcleo é formado pelo “drama lyrico”, dividido por
sua vez, em dois momentos: o primeiro, narrativo, e o segundo, apaixonado,
correspondendo ambas, respectivamente, ao recitativo e à ária. Assim, o poema
lírico deve constituir-se por “huma cadèa de situaçoens interessantes, tiradas
do fundo do assumpto, e terminadas por huma catastrophe memorável”, evitando
“discursos extensos e ociosos” (p.66). Quanto ao estilo, deve ser “enérgico,
natural e fácil; com graça, mas fugindo da elegância estudada” (p.66-67). Mesmo
porque “as verdadeiras regras de hum theatro capaz ao mesmo tempo de interessar
os homens, e de corrigir os seus defeitos; de hum theatro, que seja juntamente,
o lugar de recreio e a escola da moral” (p.68).
Aqui, é particularmente
claro que Guimarães se vale dos preceitos de Horácio (“havendo-me. proposto
sempre a Horacio por modelo”, p.81) e da tradição clássica para tecer as suas
considerações sobre as belas letras de modo geral. E é justamente com Horácio
que Guimarães pretende fazer a anatomia da obra de Coutinho (“ser hum pouco
mais miúdo, p.83) e despi-la de seus ornatos e “mostrar o esqueleto” de sua
composição.
O ponto principal da
crítica, neste aspecto, refere-se à passagem em que Vênus ordena aos Cíclopes
que forjem as armaduras dos portugueses, porém, explica com acuidade Guimarães,
isso já havia sido ordenado por Vulcano. Esta sobreposição seria tautológica e
nada acrescentaria à dinâmica do enredo. Seria uma estratégia apenas para
inflar o texto e um modo comezinho de sugerir que o povo português estaria sob
as benções de Vênus (COUTINHO, 1813, p.5).
Depois disso, há um
corte abrupto na narrativa, dando início a “hum novo enredo independente do
primeiro”. Num bosque, a personagem Paz se queixa por encontrar guarida apenas
entre os animais brutos. O Gênio Lusitano então vaticina que um ilustre monarca
deverá restituir a harmonia no mundo por meio de um herdeiro. Trata-se,
obviamente, para a audiência da corte do Rio de Janeiro, de D. João VI e de seu
filho, D. Pedro de Alcântara. Em seguida, o Gênio conduz a Paz até as forjas de
Vulcano, onde apresenta as armaduras dos portugueses, que estão depositadas no
Templo do Heroísmo. Ali, percebem a presença da deusa Vênus. De repente, surge
um coro formado pelos Cíclopes e pelas Graças. E, num quadro final, o Gênio
promete que os portugueses serão um povo invencível e formarão um novo Império,
maior que todos aqueles dos tempos modernos e da Antiguidade (COUTINHO, 1813,
p.12s).
Guimarães, leitor
assaz consciencioso, percebeu claramente essa junção compósita de vários
quadros narrativos, cuja coerência reside tão somente na sua remissão ao tema
principal, porém que, observado em seus detalhes mais precisos, revela a total
ausência de coesão entre as partes. “Debalde se procura huma acção, que tenha
justa grandeza, como falla Aristóteles, ou principio, meio e fim; em vão se
quer ver desempenhado hum só preceito deste grande Mestre; he tempo perdido
fazer dos diversos retalhos huma acção; não há ligação, nem nexo; não se achão
senão palavras” (p.88). Mesmo porque não se respeitam com rigor as “regras de
Aristóteles, Horacio, Boileau, Vida, e outros" (p.88). Enfim, trata-se de
“huma peça sem unidade” (p.88).
De igual modo crítico
Guimarães refere-se à sentença e à dicção. É uma parte breve, cujo teor
concentra-se na elocução indecorosa, em especial, nas falas das personagens que
pecam pelo coloquialismo. Vulcano, exemplifica Guimarães, numa de suas ordens
aos Cíclopes, diz: “Vamos a trabalhar, que o tempo voa”. Mas deve-se considerar
que não cabe discurso baixo em fala de personagem ilustre, pois “A locução
rasteira he vergonhosa na boca de huma Divindade”. Isto, porque contraposições
extremas ferem o entendimento do público. Na fala de Vênus: “fervem / Entre o
granizo de fataes pelouros / Nadando em sangue imigo” (p.90). Em verdade, a
constituição do ethos das personagens se realiza não apenas por meio de suas
ações grandiosas, heróicas e moralmente virtuosas no interior do enredo, mas
igualmente por suas intervenções lingüísticas, cujo teor deve necessariamente
respeitar a dignidade de seu status social superior.
O bom uso da língua e,
por conseqüência, das inúmeras possibilidades de seus diversos registros é
constituído no início do século XIX por matéria regrada e devidamente
doutrinada em gramáticas e tratados de pedagogia. É que a expressão social de
um determinado indivíduo que pertence aos níveis mais altos da hierarquia se dá
por manifestações ou signos de distinção. A partir disso, sinais exteriores,
como moradia, vestimenta, adornos e os registros de fala, são considerados
indicativos, com caráter objetivo, de riqueza, superioridade moral e poder
político (BURKE, 2004).
Dessa forma, os
argumentos mobilizados por Guimarães conseguem desvelar uma série de questões
de grande importância para se compreender o panorama do mundo literário na
Corte do Rio de Janeiro à época de D. João VI: quais autores eram considerados
autoridades, qual o tipo de peça era encenada, a natureza da crítica literária
e quais os problemas que eram mais pungentes, qual variedade do idioma
literário era considerado o mais adequado para os palcos brasileiros. Além
disso, conseguem também sinalizar de modo contundente quais espaços ou campos
do saber, com seus respectivos grupos ou representações sociais, estavam se
digladiando para a obtenção de prestígio.
No entanto, é preciso
considerar que, conforme explica Eric Auerbach, ao longo do século XVIII, a
exaltação do herói trágico e dos personagens ilustres vai paulatinamente se
esgarçando em prol de um tom mais variado. A gravidade e o sublime, marcas
fundantes do estilo elevado, dão lugar ao gracioso, elegante, sentimental e
útil. Foi justamente a época em que ganharam relevo o romance, a narração em
verso e, no gênero teatral, aquelas produções que misturavam a comédia e a
tragédia (AUERBACH, 1998, p.367). Jacques Lacombe, um autor muito lido no
período, execrava a mistura de gêneros, porém admitia o esgarçamento da intriga
com a desfiguração algo caótica da unidade de ação. Para tanto, os personagens
deveriam ser o resultado de “uma imaginação tenra e ardente”, a partir de
“pinturas vivas, e variadas”, “toques atrevidos e passageiros”, pois assim se
manipulam “todas as faculdades da alma” (LACOMBE, 1785, p.126). As “peças
episódicas” seriam, dessa forma, sub-gênero da comédia, em que, como a maestria
de Molière, se desvela a “metaphisica do sentimento”, a “analyse pesquizada do
coração” e os "matizes finos, e delicados das paixoens” (1785, p.127).
Nesse sentido, podemos
afirmar perfeitamente que Espetáculo sobre as Belas Artes (1785), de Jacques
Lacombe, é em certo sentido uma resposta ao Discurso sobre as ciências e artes
(1750) e a Carta a D'Alembert sobre os espetáculos, de Rousseau, autor
considerado por Guimarães como autoridade em termos de arte literária. Em ambos
os textos, Rousseau atacava o teatro e por tabela o seu correlato narrativo e
prosaico, o romance. Se depois com os esforços de Voltaire, Diderot,
Montesquieu e do próprio Rousseau, o romance foi reabilitado, faltou a defesa
do teatro como forma literária legítima. Os filósofos iluministas, de início,
execraram o romance moral e esteticamente, para depois, reabilitá-lo como
gênero em que se confluíam o logos e o mythos (a fábula e a razão, ficção e
filosofia). Lacombe, então, trilhou o caminho diverso. Para ele, o teatro, além
daqueles gêneros tradicionalmente cultivados pelo cânone, tinha a maleabilidade
de incorporar outros gêneros. É justamente, nesses termos, que surgem as “peças
episódicas” (“dramas extravagantes” ou “peças de gaveta”), que inicialmente
foram adotadas pela comédia, mas que abria virtualmente infinitas
possibilidades de apropriação tanto temática (um leque bem amplo de assuntos,
desde os mais corriqueiros até aqueles de índole instituicional), quanto
estética (aquela mistura de gêneros e de formas). De passagem, para Diderot, em
Os dois amigos de Bourbonne, era o “conto maravilhoso” que ocupava essa
posição, pois, à maneira de Homero, Virgílio e Tasso (a epopeia), remetia o
leitor ao universo grandioso e mítico, onde “tudo se faz grande, assim como são
pequenas as coisas que vos cercam”.
Como se disse, Câmara
Coutinho era autor muito conhecido nos meios literários de Portugal e a disputa
com Guimarães que, de início, restringia-se aos aspectos absolutamente
literários acabou por descambar em rivalidade e ataque pessoal com indiscrições
de ambas as partes. Porém, longe de se restringir ao âmbito exclusivo dos
indivíduos em questão, essa querela sinaliza perfeitamente, em termos
históricos, dois âmbitos complementares: primeiro, o que estava em jogo era
qual tipo particular de modelo para a comunicação letrada; e segundo, uma
rivalidade (nesse caso, franca e aberta, pois se tratava de veiculação pública)
entre brasileiros e portugueses no contexto mais imediato da transferência da
família real para o Brasil em 1808.
De qualquer forma, o
padre Perereca (Luís Gonçalves dos Santos) em suas Memórias para servir à
História do Reino do Brasil (2013, p.513) descreve a inauguração do Real Teatro
de São João, cujo nome foi dado em homenagem ao príncipe regente D. João, em 12
de outubro de 1813, data do aniversário do príncipe da Beira, D. Pedro de
Alcântara. À inauguração, compareceram grande parte da família real, toda a
fidalguia e demais pessoas distintas da Corte. A magnificência do edifício
previa emular os melhores teatros da Europa em termos de seu aparato cênico
(cenário, vestuário, decorações) e de suntuosidade (camarins, aposentos,
camarotes e espaço para a plateia). Foi um dos monumentos públicos que serviram
para adornar a “capital do Brasil” e “aformosear a nascente Corte” do “novo
Império”.
Sobre os detalhes da
festividade, por exemplo, quais foram as peças teatrais representadas,
Gonçalves dos Santos nada diz.
Referências
Dr. Ricardo Hiroyuki
Shibata é professor de Literatura na Unicentro (Universidade do Centro-Oeste do
Paraná), campus Santa Cruz.
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Boa noite, Prof. Ricardo Hiroyuki,
ResponderExcluirObrigado pelo texto, ele nos fornece uma rica análise de tópico pouco explorado entre nós: a história do debate crítico de nossas Letras. Nesse sentido, estou certo que seu estudo contribui substancialmente para minorar essa lacuna na produção acadêmica voltada às práticas letradas dos últimos anos da Colônia.
Tenho duas breves perguntas a fazer-lhe:
1. levando-se em consideração o contexto da publicação e da circulação do periódico, não poderíamos ler essa "querela", entre o jornalista Araújo Guimarães e o escritor Câmara Coutinho - de teor, inicialmente, literário, mas que acaba por transformar-se em ataques pessoais -, como uma espécie de "encenação" com fins a prender a atenção dum círculo de leitores? Faço a pergunta ao Professor pois, tendo em conta que se tratava duma publicação da Impressão Régia e que seus principais colaboradores tinham uma aproximação muito estreita com a Administração - alguns dos quais inclusive receberão títulos de marqueses e viscondes tempos depois -, confesso ter um bocadinho de dificuldade em perceber a crítica do Araújo Guimarães como verdadeiro agenciamento de "uma rivalidade entre brasileiros e portugueses";
2. a segunda, mais simples e de ordem meramente terminológica, o termo “plágio” consta textualmente na crítica do Araújo Guimarães?
Mais uma vez: Muito obrigado por nos trazer esse rico estudo histórico!
Cordialmente,
Carlos Eduardo Bione
Agradeço muitíssimo pelas questões, pois me permitem desvelar um pouco mais os contornos mais nítidos desse primeiro grande debate literário no Brasil.
ResponderExcluir1. Se a intenção dos dois contendores era fazer uma "encenação" para chamar a atenção do público, sobretudo, para a importância da questão literária no período, eles conseguiram brilhantemente seus intentos.
Basta verificar o rio de tinta que correu entre ambos após a publicação do primeiro artigo de Araújo Guimarães em O Patriota. Coutinho chegou até a escrever uma comédia, de certo fôlego, em que o tema principal debatia a autoridade da crítica literária.
De fato, foi realmente uma "encenação", pois ambos procuravam ocupar, de modo público, um lugar de proeminência e de protagonismo quanto aos problemas que envolviam a literatura como forma de comunicação aristocrática. Tratava-se, de um lado, o de Araújo Guimarães,
de defender a tradição e o cânone, fundados em Cândido Lusitano, Boileau, Horácio e Aristóteles; e, de outro, o de Câmara Coutinho, de esgrimir com as "novidades" propostas por Metastasio e Jacques Lacombe.
A dimensão desse debate é tanto maior, se levarmos em conta, como você muito bem destacou, que são autores que colaboravam com a Impressão Régia; instituição, que viu sair de seus prelos o jornal O Patriota, de Guimarães, e a peça teatral O juramento dos Numes, de Coutinho. De fato, ambos possuíam uma proximidade com os membros da monarquia. Porém, sabemos que os aristocratas que gravitam ao redor da realeza disputam privilégios e benesses. O baiano Guimarães pertencia à nobreza terratenente; e fora aliado de primeira linha de D.Rodrigo de Sousa Coutinho ("herdeiro" do marquês de Pombal) e Antônio de Araújo de Azevedo (conde da Barca). Por sua vez, D.Fausto Gastão Câmara Coutinho era da grande nobreza de Portugal e viera ao Brasil com o família régia.
Para resumir uma longa história, verificando a biografia de ambos, nós temos que Guimarães fez parte ativa no processo de independência do Brasil. E Coutinho será aliado dos liberais em Portugal.
2. De fato, tomei a liberdade de usar o termo "plágio" por ser um pouco mais palatável e também mais didático por conta da natureza desse nosso Simpósio, cuja longevidade impressiona, sobretudo, se pensarmos no contexto sempre menos favorável ao ensino e à pesquisa no Brasil.
Guimarães usa mais propriamente o termo "imitação", porém como se trata de imitação servil, tive preferência por traduzir esse termo por "plágio", o que em verdade está de acordo com o espírito do argumento esposado por Guimarães. Porém, a acusação não é apenas de copiar o original e fazer uma espécie de colagem. O escopo da crítica é mais grave, pois se tratava de debater a pertinência de emular trechos da epopeia (como algumas passagens de Os Lusíadas, de Camões) no âmbito de uma tragédia. Esse mistura de gêneros é fortemente criticada por Guimarães e o público letrado do período tinha plena consciência do que Coutinho tinha feito. Mesmo porque esse público estava habituado a ordenar os textos conforme o gênero ao qual pertenciam. E esse ordenamento constituía um tipo específico de comunicação entre aristocratas e membros das elites. E vale destacar que uma sociedade fundada em hierarquias depende de estatutos próprios de distinção social, não apenas pela expectativa de um tratamento diferenciado e conveniente ao seu lugar social pelos outros, mas, de igual modo, nas formas de regrar o seu próprio comportamento.
No limite, Guimarães acusa Coutinho de não se comunicar adequada e efetivamente com o seu público e (mais ainda) desrespeitá-lo enormemente ao usar uma mistura de gêneros literários.
Espero ter respondido os seus questionamentos a contento.
E, mais uma vez, agradeço pela excelente intervenção.