APRENDENDO A LER O PASSADO COM OS CHINESES
Em torno do século 6
aec, o grande sábio chinês Confúcio [551-479 aec] começou a organizar uma
crônica histórica bastante peculiar, chamada de livro das ‘Primaveras e Outonos’
[Chunqiu春秋]. O livro trazia uma série de
referências a acontecimentos políticos de sua terra natal, o ducado de Lu,
apresentados de uma forma críptica. Havia uma série de indicações de datas,
acompanhadas de breves descrições dos eventos. Esses fragmentos de texto podem
parecer ilegíveis, hoje, a primeira vista: contudo, Confúcio estava criando uma
gramática histórica, utilizando termos precisos para explicar, de maneira
sintetizada, determinados acontecimentos e situações. Uma passagem simples pode
nos ilustrar isso. No capítulo sobre o primeiro ano do Duque de Yin [772 aec],
ao qual voltaremos nesse texto, Confúcio escreve o seguinte: ‘No verão, no
quinto mês, o conde de Zheng venceu [克段]
Duan em Yan’. Surpreendentemente, a informação acaba por aí! Então, qual seria
o significado ou importância dessa passagem? A palavra venceu [克段 Kefu] indicava o sentido
fundamental da texto: Confúcio queria dizer que Duan havia sido derrotado
porque seus motivos estariam errados, ele seria um conspirador e havia tomado a
iniciativa de atacar. O sentido etimológico da palavra indicava sutilmente a
ideia de vencer, e também, de impor limites, restringir, de alguém mais forte
ou superior se afirmar perante seus adversários. Assim, Confúcio pretendia que
o uso do termo fosse incisivo, significando um julgamento moral do evento. Esse
uso correto dos termos [對辭 duici]
era um requisito fundamental para historiadores e diplomatas, visando um
cuidado nas relações e nas formas de expressão [Bueno, 2015a].
Na época de Confúcio,
é bem provável que seus discípulos e leitores soubessem do que ele estava
falando, e esses ainda fossem eventos vivos em suas memórias. No entanto, com o
passar dos anos, gradualmente as lembranças sobre esses acontecimentos se
diluíram ou ganharam novas versões, fazendo com que os fragmentos textuais
fossem perdendo sentido. Após a morte de Confúcio [479 aec], começaram a surgir
comentários diversos as ‘Primaveras e Outonos’, dos quais se destacaram três, o
Zuo zhuan 左傳, o Guliang zhuan 穀梁傳 e o Gongyang zhuan 公羊傳, que buscavam dar novas
interpretações sobre suas passagens. Esses comentários eram tão copiosos que
chegavam a compor um novo livro, superando amplamente, em extensão, o texto
original.
Um deles, o Gongyang
zhuan [Miller, 2015], é atribuído a Gongyang Gao 公羊高, aluno de Zixia子夏, um dos discípulos diretos do Mestre Confúcio. Durante
a Dinastia Han 漢, o
Gongyang era um dos guias preferidos para a interpretação das ‘Primaveras e
Outonos’, sendo estudado por autores importantes como Dong Zhongshu董仲舒 [179-104 aec] e seus continuadores
Sima Qian 司馬遷 [145-85 aec] e Hexiu 何休 [129-182 ec]. Esse último é o que
nos interessa mais aqui: Hexiu nos legou uma interessante teoria, no mesmo
comentário sobre o ‘Ano 1 do reinado do Duque Yin de Lu’ que estamos analisando.
Em uma passagem – ligeiramente extensa, razão pela qual não a reproduziremos –,
ele propunha que a visão da história se dividia basicamente em três momentos: a
era do ‘ouvi dizer’ [所傳聞 suo
chuanwen], a era do ‘eu ouvi’[所
聞 suo wen] e a era do ‘eu vi’[所見 suo jian]. Vejamos a passagem:
“Primaveras e Outonos:
Gongzi Yishi 公子益師
morreu.
O comentário de
Gongyang:
Por que [Confúcio] não
gravou a data? Porque [o evento] estava distante [no passado]. Ele usou
convenções de escrita diferentes para o que tinha visto [suo jian 所見], o que tinha ouvido [suo wen 所 聞] e o que havia sido transmitido a ele [suo chuanwen 所傳聞]”. [Csikszentmihalyi, 2004:84-8]
A partir daqui, Hexiu
nos apresenta, no texto, uma série de exemplos de personagens e passagens
históricas que atendiam a ideia central de distanciamento temporal entre ‘ouvir
dizer’, ‘ouvir’ e ‘ver’. Na primeira, lidamos com as tradições e escritos, sem
podermos ter um contato direto com o que ocorreu; na segunda, podemos conversar
com pessoas que presenciaram o evento, ou acessar materiais da própria época;
por fim, na última, somos narradores conscientes do ocorrido, podendo dar um
testemunho direto do contexto. Quanto maior for a distância no tempo, maior a
dificuldade de reconstituir a história; desde a época de Confúcio, pois, muito
se perdera, e a obra do Mestre era o fio condutor do renascimento Han,
permitindo uma consolidação da sociedade e da cultura por meio das instituições
políticas. Hexiu se baseara no período de vida de Confúcio para propor um método
de leitura sobre o passado e a evolução da história, cuja função se mantinha
intimamente ligada à manutenção da moral e de uma vida ética. No final de seu
texto, ele escreveu: ‘Em épocas em que a bondade está em declínio, e a justiça
está desaparecendo, esse método pode ser usado para ordenar as relações humanas
e classificar os diferentes tipos de pessoas. Com base nela, podemos
administrar as leis, que vão criar ordem a partir do caos’[idem, 2004:88].
A teoria de Hexiu foi
alvo de amplos debates na Historiografia Chinesa, que discutiu ao longo dos
séculos o quanto as fontes podiam realmente informar – ou não – sobre o
passado. Desde a antiguidade, os autores chineses começaram a desconfiar dos
textos, cotejando passagens, criticando-as, comparando materiais. No século 19,
enquanto Leopold von Ranke [1795-1886] propunha ideias problemáticas sobre uma
verdade histórica, os historiadores da China já sabiam plenamente que essas
‘verdades’ eram construídas de acordo com os interesses mais variados, desde a
simples difamação até uma agenda política definida. De qualquer forma, nessa
confluência que se torna o debate historiográfico de hoje, no qual as tradições
ocidentais e asiáticas se encontram – um exemplo excelente disso é o trabalho
de Achem Mittag e Jorn Rusen [2004] –, a teoria de Hexiu pode ajudar a
compreender nossas visões de passado, e as ilusões que criamos sobre os
testemunhos e as fontes.
As
visões sobre o passado
Somos da opinião de
que a conceituação proposta por Zygmunt Bauman [Bauman, 2001], de que vivemos
uma ‘modernidade líquida’, na qual se dissolvem as ideias, sentimentos e
aspirações envolve, igualmente, a construção de uma consciência histórica. Duas
interpretações, mais gerais sobre o passado, são encontradas no senso comum
brasileiro: uma pouco preocupada com a ideia de história e de passado, ligada a
um sentido imediatista e materialista dos eventos [o ‘Presentismo’, resenhado
por Ramalho, 2013]; outra, conectada a uma ascendência histórica construída,
que não discute criticamente as fontes, mas ao contrário, afirma-as de forma
canônica e dogmática - seja nas visões religiosas ou não [Lima & Hypolito,
2019].
A primeira visão,
aparentemente, cumpre o sistema proposto por Hexiu, defendendo que os processos
históricos são mais bem visualizados por suas próprias testemunhas. Isso faz
todo o sentindo, tendo em vista que sua compreensão sobre o tempo, como
dissemos, é imediatista e contemporânea. Inseridos no dinâmico processo de liquidez,
a compreensão – ou mesmo, o interesse – pelas fontes e pelo passado constitui
um requisito desimportante para os personagens que a vivenciam. Como afirma
François Hartog, ‘Sem futuro e sem passado, ele [o presente] produz diariamente
o passado e o futuro de que sempre precisa, um dia após o outro, e valoriza o
imediato’ [Hartog, 2013:148]. Mas se os testemunhos do presente são os
‘melhores’ [‘eu vi’], então, como avaliar a qualidade e a consciência das
narrações produzidas por autores que não possuem um interesse historiográfico
evidente? Se não há propósito em preservar, logo, não há uma busca por
compreender os fenômenos em suas perspectivas mais amplas, propiciando fontes
bastante limitadas de informação. Ademais, há igualmente uma leitura acrítica da
informação [‘eu ouvi’]: a enorme massa de dados produzida pela mídia e na
internet ensejou a proliferação de ‘memes’ e ‘fake news’, que contribuem
significativamente na construção das visões de mundo. Assim, como aceitar que o testemunho do tempo
presente é o melhor? Como valorar a carga de ‘verdade histórica’ depositada na
afirmação ‘eu estive lá, eu vi’?
Nesse sentido, a ideia
de Hexiu se veria esvaziada: afinal, ele supunha que sua sociedade havia se
desenvolvido desde a época de Confúcio, séculos antes; então como afirmar que a
qualidade dos escritos históricos, bem como a consciência sobre eles, se
aprimorara? Obviamente, ele enxergava isso do ponto de vista do triunfo
confucionista – ou seja, que a adoção do Confucionismo como doutrina de Estado
na dinastia Han significava uma restauração de uma ética política. O processo
de cognição histórica seria, portanto, cumulativo; mas para isso, Hexiu
precisava ignorar que durante séculos os acadêmicos precisaram lutar
enfaticamente para fazer sobreviver às ideias de Confúcio, tendo inclusive que
enfrentar o difícil período dos estados combatentes [Zhanguo shidai 戰國時代, 481-221 aec] e da dinastia Qin秦[221-206 aec], quando ser um
intelectual discordante era, literalmente, um crime previsto por lei. A ideia
de abolir o passado e reescrever a história, com base no tempo presente, foi
inclusive uma das ideias mais polêmicas de legistas como Hanfeizi 韓非子[288-233 aec], um dos articuladores
da ascensão de Qin [Bueno, 2015b].
Outro problema
relacionado a essa visão presentista é de como seus cultores qualificam ou não
os depoimentos históricos. Embora a autoridade do ‘eu vi’ devesse ser
dominante, a construção das narrativas, por parte dos mesmos, é extremamente
seletiva. Não sejamos ingênuos, toda a história é seletiva: mas é fascinante
como o processo de escolha das informações é influenciado por razões
sentimentais ou ideológicas. Alguém pode ser testemunha de um determinado
evento ou contexto e, mesmo assim, ser desautorizado. É como se alguém dissesse
‘eu vi’, e o outro respondesse ‘mas eu não’; e consequentemente, aquele que
‘viu’ é qualificado de ‘ouvi’ ou ‘ouvi dizer’, mesmo que ambos sejam
contemporâneos. Essa condição paradoxal revela que a escolha da ‘verdade’
dependerá, em grande parte, mais do desejo de asseveração do que propriamente
do conhecimento; e o ‘método’ é afirmado e negado concomitantemente, provocando
uma inevitável tensão.
A
falácia do passado ideal
Os historiadores
chineses já haviam notado a clara dificuldade de lidar com as fontes. Mesmo que
uma testemunha afirmasse determinado ponto de vista sobre tal evento, dando
garantias virtuais como ‘honra’ ou ‘compromisso’, mesmo assim ela poderia estar
comprometida pelo ângulo de visão ou pela limitação em contemplar o problema em
sua maior extensão. Ademais, existem condições coletivas de observação do
passado. Pensadores como Lü Zuqian 呂祖謙já
haviam denunciado que a visão de passado é influenciada, em grande parte, pela
comodidade do presente: ‘Muitas pessoas, quando examinam a história,
simplesmente olham os períodos de ordem e acham que estão em ordem; olham os
períodos de desordem e acreditam que estão em desordem, observam um fato, e não
sabem mais do que este mesmo fato os diz. Mas isso é realmente apreciação
histórica?’ [Bueno, 2011:26-7] Assim, em momentos de crise, uma sociedade
olharia seu passado como uma era dourada, inspiradora e superior, e o momento
atual como de ‘decadência’; e quando o período é de pujança e felicidade, o
passado passa a ser ruim, primitivo e atrasado, sendo o momento presente uma
etapa de superação.
Esse tipo de
interpretação embasa a segunda visão que propusemos, a de que o passado é dado
como ideal, e calcado em fontes confiáveis e canônicas. Há aqui uma
interessante diatribe com a noção trifásica do sistema de Hexiu; ‘ouvi dizer’
foi momento em que se construíram os alicerces de hoje, ou seja, uma fase de
ouro; ‘eu ouvi’ e ‘eu vi’ deixam de ser testemunhos históricos válidos para
serem substituídos por uma ideia de ‘verdade maior’, dado pelo escrito.
Colocando de outra maneira: quanto mais antigo um testemunho for, mais
verdadeiro ele será: e será verdadeiro porque sobreviveu, pois se fosse uma
‘mentira’, não sobreviveria. Desse modo, o ato de ‘ver’ passa a ser reproduzir,
de forma dogmática, o que se ‘ouviu dizer’. Isso parece de uma ingenuidade
tacanha, tão ruim ou pior do que a primeira visão que discutimos. Mas ela
embasa o filtro histórico de milhares de pessoas na atual sociedade brasileira,
que leem acriticamente informações do passado, como se fossem verdadeiras. Para
elas, o momento atual é de decadência, e é necessário resgatar um contexto
idealizado do passado. Desconhecendo as regras do anacronismo, elas projetam
sobre o ‘antigo’ certas visões e problemas atuais, e julgam que as respostas do
passado continuam a valer nos dias de hoje. Esse tipo de consideração é muito
comum entre movimentos religiosos, mas encontra também uma profunda ressonância
entre grupos políticos, que advogam a restauração do sistema por meio de
intervenções calcadas em ideologias ou contextos do passado recente.
A visão idealizada do
passado era um recurso muito comum na antiguidade. O próprio Confúcio propusera
um processo de ‘decadência’ de sua civilização, expressa na ideia das três eras
históricas [Liji 禮記,
cap.9]. Hexiu inverteu esse paradigma, defendendo que após Confúcio, o ciclo se
invertera. Pelo visto, pois, os cultores da visão decadentista precisam
construir uma interpretação unívoca do passado, assentada em fontes
‘consolidadas’. Ian Buruma e Avishai
Margalith [2006] mostraram como uma interpretação desse gênero surgiu entre os
escritores alemães românticos do século 19, que defendiam uma ‘superioridade
espiritual’ em relação à ‘decadência moral e materialista’ do Ocidente. Ideias
como essa fomentaram um ressentimento persistente, que deu origem aos
movimentos Nazifascistas das décadas de 1930-40 e aos radicalismos religiosos
orientais, que estereotipam o Ocidente como ‘fonte de todo o mal’, num
movimento caracterizado como ‘Ocidentalismo’.
Não devemos estranhar,
portanto, a revivência de movimentos radicais na atualidade, que pretendem
combater a ‘liquidez contemporânea’ invocando concepções de ordem antigas. Na
visão deles, a decadência de hoje é fruto de um ‘abandono’ do passado,
invertendo a relação sistêmica de causa e efeito; não foi na antiguidade que os
problemas surgiram, mas na ‘perda dela’. Nessa ordem de raciocínio, é como
afirmar que períodos da história da humanidade em que ocorreu a escravidão,
inquisições, guerras de extermínio e pandemias destruidoras fossem ‘melhores’,
por haver uma ‘moral superior’. Obviamente, esse raciocínio não deveria se
sustentar; mas a presença deste nas macrovisões de mundo da sociedade
brasileira forçosamente desperta nossa atenção para como tem sido feito o
trabalho de ensino de história.
Uma
análise
Gostaria de exercitar
a teoria de Hexiu, fazendo uma análise a partir de sua teoria trifásica,
envolvendo as duas visões anteriormente discutidas. Partindo da afirmativa
axiomática ‘eu vi’, poderíamos afirmar que o passado é menos interessante, ou
mais problemático, que os dias de hoje; da negação desse ponto de vista, que
valoriza a ideia de ‘ouvi dizer’, o passado torna-se referência de ordem e
padrão cultural. Entre ambas, se estabelece uma relação antitética de cultura
[ciência] x cultura [espírito], que se desdobra na forma como o passado é
reinterpretado. Para exemplificar as dificuldades de ambas as visões,
resgatamos da internet essa imagem, amplamente difundida [um ‘meme’], que
mostra quantos aparelhos eletrônicos eram necessários, nos anos 1980, para
compor um pretendido índice de ‘satisfação material’:
Fig.1 Aparelhos
eletrônicos da década de 1980
Poderíamos incluir
ainda o aparelho televisivo, ausente na figura: e todos esses aparelhos, hoje,
cabem dentro de um único ‘smartphone’, cujo custo, drasticamente menor do que o
de todos os aparelhos representados, tem se estabilizado graças à difusão da
produção eletrônica em escala global. Numa perspectiva tecnológica e material
[cultura-ciência], a situação atual seria ‘melhor’, em termos qualitativos, ao
passado. O estágio metodológico ‘eu vi’, aqui, se apresentaria como ‘adequado’.
No entanto, a simples análise da imagem não nos informa: os padrões de consumo
acompanharam esse desenvolvimento, ou parcelas de sociedade se mantiveram
afastadas desse desenvolvimento? Se o processo de construção histórica for
cognitiva, então porque os indivíduos de hoje tem dificuldades em operar
aparelhos antigos, como máquinas de escrever? A relação de eficiência desses
recursos tecnológicos aumentou ou diminuiu o tempo para o ‘ócio criativo’
[Masi, 2001], necessário à reflexão intelectual? Por fim – e mostrando que as
questões aqui são mais complicadas do que pensamos – o que determina a formação
dos movimentos nostálgicos, que recuperam [e renovam] gostos musicais e
artísticos de períodos como os anos 1980?
Em outro sentido, o
segundo grupo defenderia que essa época teria sido ‘melhor’, pois diversas
áreas da sociedade, tais como economia, segurança e cultura [cultura-espírito]
estavam mais próximas de um ideal de ordem monoideológico. A própria imagem,
mostrando uma profusão de invenções tecnológicas, revela que o período fora
fértil em ideias e propósitos de engrandecimento. Em que momento, pois, que a
motivação se perdeu? Se esse passado era ideal, porque acabou? O que faltou
para a manutenção da ‘era de ouro’? No caso específico do Brasil, é relevante
notar como a memória é recriada em função do propósito. Na mesma época em que
todos esses equipamentos estavam disponíveis a uma parcela reduzida da
sociedade, o poder aquisitivo dos brasileiros era nitidamente expresso pela
nota de mil Cruzeiros, o famoso ‘Barão’, que em 1983 só podia comprar um
chiclete.
Fig.2 Cédula de Mil
Cruzeiros, que circulou entre 1978-1986.
Afirmar que essa época
era menos violenta ou mais saudável é desconhecer o processo de formação das
estatísticas brasileiras. Milhares de pessoas sofriam com doenças endêmicas,
somente erradicadas ao longo de décadas de vacinação, decretadas pelo Estado;
crimes étnicos ou de gênero não eram contabilizados simplesmente por não serem
contemplados pela lei – e lembremos, mais uma vez, que as leis são feitas para
combaterem os crimes, não são os crimes que são ‘inventados’ pela lei. Os
índices de escolarização cobriam, somente, os que sabiam escrever e estavam na
escola – consequentemente, quem não sabia escrever, e/ou não ia à escola,
estava fora dos números; desse modo, alcançar níveis satisfatórios de educação
era uma tarefa simples. Hoje, no entanto, alguns atores sociais acreditam que
no passado não havia crimes desse tipo, pela ausência de estatísticas, que as
vacinações não influenciaram o quadro da saúde, mas defendem que a educação era
ótima – mascarando suas restrições estruturais. Assumindo, por apenas um
momento, que esses argumentos tivessem alguma chance de ser verdadeiros, qual a
razão então dessa sociedade idílica sucumbir ao tempo? Inevitavelmente, até os
cultores dessa visão precisam admitir que existem falhas de transmissão na
ideia de ‘ouvi dizer’.
Algumas
conclusões interculturais
Nossa experiência
envolveu analisar uma teoria historiográfica chinesa à luz da atual sociedade
brasileira. Vale ressaltar que nosso expediente pode ser amplamente criticado
em vários sentidos, mas o propósito aqui foi fazer um exercício de
desconstrução histórica. Usando um instrumento teórico distinto dos usuais
[‘ocidentais’], investigamos como as ideias correntes de ‘ver’, ‘ouvir’ ou
‘ouvi dizer’ estão profundamente enraizadas em nossa cultura como, ações
indispensáveis à construção de conhecimento histórico, ainda que férteis em
interpretações polissêmicas.
Em um ensaio anterior,
propusemos que uma visão de cunho geral da historiografia chinesa reinterpreta
o passado como um ‘ficção científica’[Bueno, 2011], valendo-se de fontes, mas
também, da concepção crucial de crítica histórica, do uso da imaginação e da
consciência de que todo modelo sobre o mesmo passado é uma idealização
possível.
Assim, o que podemos
aprender com os chineses sobre como ler o passado, e usar algumas de suas teorias
em nossas investigações, pode ser resumido em três axiomas fundamentais:
1.A autoridade do
testemunho é contradita no contexto: o fato do autor estar inserido no contexto
tem implicações variadas. Um autor pode sempre ser fruto de seu contexto histórico,
mas sua visão não necessariamente explicita os sentidos de sua escrita. Jornais
publicados em países com regimes autoritários, por exemplo, são excelentes
fontes para observar essas contradições: as informações tendem a ser positivas,
mas não explicam a irrupção de ‘movimentos subversivos’ e de descontentamento.
O mesmo pode ser dito em documentos religiosos: são idealizações sobre uma
ideia de ordem e harmonia - isso significa que reproduzem uma ideia em vigor,
ou que representam uma aspiração [e por isso, implicam que a sociedade esteja
no caos]?
2.A autoridade do
testemunho é medida pela sua capacidade crítica: quanto mais ilustrado,
evidente e coerente for o estudo, mais chances eles tem de ser uma boa
interpretação sobre um evento ou problema histórico. Notem, porém, que ele tem
mais chances de ser crítico, mas nenhum estudo histórico é desprovido de função
ou interesse. Todo o escrito histórico, na China tradicional, admitia a
intervenção da imaginação como instrumento de leitura das fontes. A imaginação,
racionalizada, aproximaria o estudo de um modelo explicativo satisfatório; mas
fora de um balanço, ela descamba em fanatismo, fantasia ou esterilidade de
ideias.
3.Desde a antiguidade,
pois, os chineses aprenderam a contextualizar e contestar as fontes: e se não é
isso que buscamos fazer hoje, depois de milênios tentando fazer história, então
precisamos ‘ouvir dizer’ os antigos, ‘ouvir’ o mais novos, e ‘ver’ uma atitude
de mudança na investigação e no ensino de história. A impressão cognitiva não é
suficiente; a opinião sem embasamento é dogmática; a história, pois, só se
realiza se for crítica e acompanhar as mudanças do mundo.
Mesmo Confúcio, que
tinha suas impressões particulares sobre o passado, estava consciente dos
cuidados que o historiador – e mesmo, o leitor comum – devem ter com a escrita
e a compreensão da história. Em uma rápida passagem no Lunyu 論語, ele comentava: ‘Mesmo no passado,
um historiador deixava um espaço em branco em seu texto [...] Agora,
infelizmente, essas coisas não existem mais!’ [15:26]. Ciente de que a história
resulta de um processo em construção, o olhar sobre o passado nunca pode ser
concluído em absoluto. O espaço em branco é aquele onde anotaremos as
transformações, as mudanças de opinião, as novas impressões sobre o passado.
Essa pode ser, enfim, uma boa regra para ensaios historiográficos – algo que
podemos aprender com os chineses de alguns milênios atrás.
Referências
André Bueno é
professor adjunto de História Oriental da UERJ.
Imagens:
Fig.1: https://www.ndig.com.br/item/2010/03/um-nerd-dos-anos-80
Fig.2:
encurtador.com.br/lpy58
Textos:
BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BUENO, André. ‘A
história é uma ficção científica’ in Escritos de História Sínica. União da
Vitória: Ebook Proj. Orientalismo, 2011, p.95-106.
BUENO, André. ‘Abolir
o passado, reinventar a história: a escrita histórica de Hanfeizi na China do
século III a.C.’ História da Historiografia: International Journal of Theory
and History of Historiography, v. 8, n. 18, 14 set. 2015.
BUENO, André. “’Não
invento, apenas transmito’: reinterpretando a escrita historiográfica de
Confúcio”. Anais da X Semana de história
Política da UERJ. Rio de janeiro: UERJ, 2015a, p.251-260.
BUENO, André. Cem
textos de história chinesa. União da Vitória: FAFIUV/Kaygangue, 2011.
BURUMA, Ian e
MARGALIT, Avishai. Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos de seus inimigos. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.
Confúcio. Os Analectos
[Lunyu]. Trad. Simon Leys. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CSIKSZENTMIHALYI,
Mark. Readings in Han Chinese thought. Indianapolis:
Hackett, 2006, p.84-8.
HARTOG, François. Regimes
de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.
LIMA, Iana Gomes de;
HYPOLITO, Álvaro Moreira. ‘A expansão do neoconservadorismo na educação
brasileira’. Educ. Pesqui., São Paulo
, v. 45,
e190901, 2019 .
MASI, Domenico de. O
Ócio criativo. São Paulo: Sextante, 2001.
MILLER, Harry. Gongyang
Commentary on the Spring and Autumn Annals : a full translation. Nova Iorque:
Palgrave, 2015.
MITTAG, Achim & RUSEN, Jorn [orgs.] Historical Truth, Historical
Criticism, and Ideology: Chinese Historiography and Historical Culture from a
New Comparative Perspective. Leiden:
Brill, 2004.
RAMALHO, W. S. C. ‘O
presentismo e a realidade brasileira em perspectiva’. História da
Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography,
v. 7, n. 14, p. 148-154, 3 set. 2013.
Uma questão que me interessou no seu texto foi esse aspecto de construção do passado, a concepção dos espaços em branco como forma de se voltar contra sua idealização. Algo do qual, segundo o texto, uma tradição historiográfica chinesa compartilha. Gostaria de saber como - o texto suscitou esse interesse - atualmente se dá essa visão dentro do ensino de história chinês, mais particularmente, a respeito do ensino da sua história recente, pós-revolucionária? Em suma, existe essa abertura para se ver a própria idealização da sua história recente no ensino dessa história?
ResponderExcluirLeandro Mendanha e Silva
Caro Leandro, tudo bem?
ExcluirA China vive alguns dilemas em relação ao ensino de história, similares aos do restante do mundo. Há um conflito entre 'histórias oficias', que reproduzem uma visão de governo, e iniciativas críticas distintas dessa visão. Na China, na verdade, essa situação é milenar. Todavia, o processo de consciência histórica se processa deforma cumulativa no imaginário, dando margens a experiências singulares - como essa estratégia proposta hoje em nosso texto.
abs,
André
Caro, prof. Dr. André Bueno, primeiramente gostaria de agradecer ao trabalho constante com a História da China, que ainda não possui espaço consolidado nas instituições de ensino superior e não superior no Brasil.
ResponderExcluirMinha pergunta:
Nós podemos observar hoje, no Brasil, de forma evidente, um choque entre as narrativas sobre o passado nacional dentro do recorte temporal da ditadura militar.
Por um lado, embora não os possa assim separar, temos um grupo principalmente marcado pelo discurso de gerações que viveram neste longo período, ou seja, reverberando hoje o "eu vi/vivi", mas que, no entanto, observa-se que não estavam nem nos centros de confrontos, entre os alvos do período, nem, como no caso de muitos, obtiveram informações ou conhecimento sobre os conflitos que se configuravam.
É possível presenciar, portanto, uma sensação de que seu próprio corpo-mente seria uma "fonte" de experiência histórica, como dirá Jorn Rüssen, mas que, no entanto, pode estar convicta de ser segura e, portanto, acrítica, de modo que possa negar pelo "não ver", mas viver o período distante de suas complexidades e ideologias na macropolítica social.
Assim temos em um outro lado, historiadores que confrontam-se com um cerceamento da liberdade teórico-metodológica, promovido por grupos que se nomeiam "sem partido" e outros que buscam propagar o revisionismo, ambos conseguindo adeptos que partem não só da História, mas das muitas outras ciências acadêmicas.
Tais fenômenos contribuem para acirrar o debate entre narrativas e as possibilidades de sua manipulação de acordo com os interesses do presente sobre o passado, e, consequentemente, o futuro partindo da junção do presente e passado que se enseja reconfigurar ao menos nas mentalidades. Como, portanto, a História na educação reage à abertura das múltiplas narrativas históricas possíveis frente ao que se "viveu" enquanto discurso de verdade na mentalidade particular dos indivíduos, ainda que se confronte com as outras narrativas de refutação?
Atenciosamente,
Francisco de Freitas Gonçalves
Francisco,
ExcluirAgradeço pela sua leitura sensível e atenta do texto. Você captou com perfeição o intuito: é discutir, justamente, o potencial desse 'eu vi', que em muitos casos pode - mas não deveria - legitimar certas visões históricas. Se trata de um jogo de deslocamento, cujo intuito é tirar o lugar de acomodação de um discurso formal.
Nesse sentido, exercitar múltiplas narrativas é sempre salutar - mesmo que discordantes - para fomentar uma consciência mais crítica. =)
abs!
André Bueno
André Bueno
ResponderExcluirA China e sua civilização sempre contribuiu para a valorização de sua História. Confúcio como um educador tentou mostrar um caminho diferente para a sociedade Chinesa em um momento de crise que a China se encontrava em seu período (551-479 aec). Lembro de uma ideia de Confucio como sábio e educador empregava que era a Propensão em que se incentivava a vocação de seus alunos a determinadas áreas. Assim ate mesmo no atual contexto a China ainda aplica ideias desse sábio em sua metodologia de educação. Acredito então que essa propensão se estende na ideia de resgate da história da China, que a sua civilização sempre foi vista com um olhar preconceituoso e também carregada de esteriótipos como se observa ate agora com a crise do COVID 19. Assim a China diante de suas inúmeras obras sobre sua civilização a ideia de propensão sobre a sua própria História é mais aplicada que uma propensão da nossa própria história de nosso país? Ou seja, os chineses valorizam a sua história muito mais que os brasileiros?
ELOIS ALEXANDRE DE PAULA
oi Elo!
Excluirque bom ve-lo aqui! =)
penso que essa consciência histórica chinesa é mais antiga e diferente. mas a história se transformou em um palco de luta política no Brasil recente, o que mostra sua valorização. Acho que em ambos os casos, as narrativas influenciam os povos; mas os chineses já tem um pouco mais de caminhada temporal nesse sentido.
abração!!!
Agradeço e parabenizo a abordagem neste encontro eletrônico e a abertura para que possamos participar e elucidar as dúvidas , num panorama mais amplo , talvez até além do texto mas num escopo pedagógico alinhado, seria correto apontar que o obstáculo central de maior fluência em ensino da História oriental é a pouca amplitude na questão de concepção de divisão do tempo? Entendo que somos no ocidente embriagados ao longo da vida estudantil pré universitária com a visão stricto sensu de temporalidade dividida em passado , presente e futuro completamente eurocêntrica, que dificulta conceber uma antecedência oriental bem como uma temporalidade não tripartite em muitos dos povos e os desdobramentos correlatos.
ResponderExcluirAss: Rodrigo da Conceição Reis Telles
Oi Rodrigo,
Excluirde fato, as experiências com a ideia de 'tempo' entre os asiáticos são vastas e diferenciadas. dê uma olhada nesse especial:
https://journals.openedition.org/cultura/1269
são artigos excelentes e que nos proporcionam um bom panorama sobre isso.
saudações!
André Bueno
Prezado prof. André, primeiramente gostaria de deixar meu apreço pelo texto, pois nos traz questões pertinentes para refletirmos sobre o pensamento histórico que ronda nosso cotidiano e sobre o papel do ensino de história nas escolas e universidades. No momento, tenho buscado me aproximar de estudos sobre historiografia oriental (chinesa e japonesa) para compreender suas especificidades e possíveis relações com a historiografia ocidental. Dessa forma, peço por gentileza se poderia explorar com maiores detalhes sobre a citada confluência do debate historiográfico das tradições historiográficas ocidentais e asiáticas, em especial se há essa confluência em relação à antítese apontada entre a ideia de história como cultura (ciência) e história como cultura (espírito)?
ResponderExcluirAna Beatriz Feltran Maia
Cara Ana,
ExcluirObrigado pela pergunta! Penso que as tensões entre essas formas de fazer história se dão por conta da institucionalização científica da história, que propôs regras de validade e aferição; mas outras formas de "fazer história " continuam a existir, e com muita força, justamente pelo seu caráter não científico ou pseudo científico. Isso permanece inerente aos problemas de consciência histórica.
Quanto às confluências, o livro de Rusen dá uma visão dessas propostas, é um bom ponto de partida.
Abraço!
Muito obrigada pela resposta e indicação!
ExcluirPrezado professor André Bueno, não seria possível ver na interpretação cumulativa sobre o processo de cognição histórica de Hexiu uma coerência com a experiência de histórica das mencionadas lutas para "fazer sobreviver as ideias de Confúcio", sobretudo no período dos estados combatentes e da dinastia Qin, em lugar de afirmar que ele "precisava ignorar que durante séculos os acadêmicos precisaram lutar enfaticamente"? O acúmulo de cognição histórica se daria também pela experiência política, sendo o triunfo do Confucionismo, com sua adoção como doutrina de Estado na dinastia Han uma prova empírica da sua teoria histórica. Ao testemunhar ("eu vi") a vitória confucionista sobre a proposta de abolir o passado e reescrever a história, Henxiu estaria registrando que Confúcio venceu [克段 Kefu] Hanfeizi, que "havia sido derrotado porque seus motivos estariam errados, ele seria um conspirador e havia tomado a iniciativa de atacar". Assim, os confucionistas teriam sido capazes de resistir e de se mostrarem mais fortes ou superiores e "se afirmar perante seus adversários".
ResponderExcluirCaro Guilherme,
ExcluirSua pergunta é instigante, obrigado! A questão é saber o que Hexiu pensava sobre Qin, o que ele não fez - ou não foi salvo pela história. Pela teoria dele, após Confúcio, a sociedade deveria evoluir ininterruptamente, a guerra civil seria o conflito dessas forças, e Qin não deveria ocorrer. Mas o questionamento é muito válido, vou reformular o parágrafo pensando essa abertura. Obrigado! =)
Uma segunda pergunta: Você saberia dizer se existe alguma influência da interprtação de Hexiu sobre o Confucionismo, que divide a visão da história nos três momentos (ouvi dizer, eu ouvi e eu vi), na elaboração da historiografia japonesa como todo e, em especial, nas crônicas Kojiki e Nihon shoki?
ResponderExcluirProvavelmente sim, pois a cultura japonesa foi fortemente influenciada pela chinesa, e as primeiras crônicas japonesas foram estruturadas a partir de modelos chineses. No entanto, vemos indicações de que as influências fundamentais eram do Chunqiu de Confúcio e o Shiji de Sima Qian.
ExcluirAbraço!
Muito obrigado pelo retorno. Serão de grande valia para mim essas referências.
ExcluirA utilização do termo consciência histórica, do autor Zygmunt Bauman, em uma perspectiva mais ampla, se propõe atacar aquela visão mais tradicional da história, que defende o distanciamento do objeto estudado ?
ResponderExcluirCarlos eduardo ferreira alves
Oi Carlos,
Excluirconsciência histórica ou modernidade líquida? =)
Caro prof Bueno, muito me animou na leitura desta abordagem! Estou a cada dia mais me aprofundando nos estudos referentes a história da Ásia, particularmente com foco no Japão, contudo, sabemos a necessidade em entender a China e sua vasta e complexa história milenar.
ResponderExcluirO dizer do historiador está diretamente vinculado à memória coletiva e à cultura, todavia, me surgiu uma questão: é possível que o soft power chinês sofra influência de Confúcio?
Camila de Oliveira Hoffmann.
Oi Camila!
ExcluirSim, com certeza! Uma dos movimentos intelectuais e filosóficos que mais cresce na China atual é o Novo Confucionismo [ou 'Novos acadêmicos'], que propõe um modelo de república confucionista no futuro, em substituição ao Marxismo. Xi Jinping tem estimulado bastante esse movimento, mesmo afirmando que é um marxista. Os conceitos confucionistas estão sendo disseminados com muita força, no sentido de compartilhar as responsabilidades do Estado com os cidadãos, o que tem modelado o caráter de muitas políticas públicas recentes.
abraço! =)