André Bueno


APRENDENDO A LER O PASSADO COM OS CHINESES



Em torno do século 6 aec, o grande sábio chinês Confúcio [551-479 aec] começou a organizar uma crônica histórica bastante peculiar, chamada de livro das ‘Primaveras e Outonos’ [Chunqiu春秋]. O livro trazia uma série de referências a acontecimentos políticos de sua terra natal, o ducado de Lu, apresentados de uma forma críptica. Havia uma série de indicações de datas, acompanhadas de breves descrições dos eventos. Esses fragmentos de texto podem parecer ilegíveis, hoje, a primeira vista: contudo, Confúcio estava criando uma gramática histórica, utilizando termos precisos para explicar, de maneira sintetizada, determinados acontecimentos e situações. Uma passagem simples pode nos ilustrar isso. No capítulo sobre o primeiro ano do Duque de Yin [772 aec], ao qual voltaremos nesse texto, Confúcio escreve o seguinte: ‘No verão, no quinto mês, o conde de Zheng venceu [克段] Duan em Yan’. Surpreendentemente, a informação acaba por aí! Então, qual seria o significado ou importância dessa passagem? A palavra venceu [克段 Kefu] indicava o sentido fundamental da texto: Confúcio queria dizer que Duan havia sido derrotado porque seus motivos estariam errados, ele seria um conspirador e havia tomado a iniciativa de atacar. O sentido etimológico da palavra indicava sutilmente a ideia de vencer, e também, de impor limites, restringir, de alguém mais forte ou superior se afirmar perante seus adversários. Assim, Confúcio pretendia que o uso do termo fosse incisivo, significando um julgamento moral do evento. Esse uso correto dos termos [對辭 duici] era um requisito fundamental para historiadores e diplomatas, visando um cuidado nas relações e nas formas de expressão [Bueno, 2015a].

Na época de Confúcio, é bem provável que seus discípulos e leitores soubessem do que ele estava falando, e esses ainda fossem eventos vivos em suas memórias. No entanto, com o passar dos anos, gradualmente as lembranças sobre esses acontecimentos se diluíram ou ganharam novas versões, fazendo com que os fragmentos textuais fossem perdendo sentido. Após a morte de Confúcio [479 aec], começaram a surgir comentários diversos as ‘Primaveras e Outonos’, dos quais se destacaram três, o Zuo zhuan 左傳, o Guliang zhuan 穀梁傳 e o Gongyang zhuan 公羊傳, que buscavam dar novas interpretações sobre suas passagens. Esses comentários eram tão copiosos que chegavam a compor um novo livro, superando amplamente, em extensão, o texto original.

Um deles, o Gongyang zhuan [Miller, 2015], é atribuído a Gongyang Gao 公羊高, aluno de Zixia子夏, um dos discípulos diretos do Mestre Confúcio. Durante a Dinastia Han , o Gongyang era um dos guias preferidos para a interpretação das ‘Primaveras e Outonos’, sendo estudado por autores importantes como Dong Zhongshu董仲舒 [179-104 aec] e seus continuadores Sima Qian 司馬遷 [145-85 aec] e Hexiu 何休 [129-182 ec]. Esse último é o que nos interessa mais aqui: Hexiu nos legou uma interessante teoria, no mesmo comentário sobre o ‘Ano 1 do reinado do Duque Yin de Lu’ que estamos analisando. Em uma passagem – ligeiramente extensa, razão pela qual não a reproduziremos –, ele propunha que a visão da história se dividia basicamente em três momentos: a era do ‘ouvi dizer’ [所傳聞 suo chuanwen], a era do ‘eu ouvi’[ suo wen] e a era do ‘eu vi’[所見 suo jian]. Vejamos a passagem:

“Primaveras e Outonos:
Gongzi Yishi 公子益師  morreu.
O comentário de Gongyang:
Por que [Confúcio] não gravou a data? Porque [o evento] estava distante [no passado]. Ele usou convenções de escrita diferentes para o que tinha visto [suo jian 所見], o que tinha ouvido [suo wen ] e o que havia sido transmitido a ele [suo chuanwen 所傳聞]”. [Csikszentmihalyi, 2004:84-8]

A partir daqui, Hexiu nos apresenta, no texto, uma série de exemplos de personagens e passagens históricas que atendiam a ideia central de distanciamento temporal entre ‘ouvir dizer’, ‘ouvir’ e ‘ver’. Na primeira, lidamos com as tradições e escritos, sem podermos ter um contato direto com o que ocorreu; na segunda, podemos conversar com pessoas que presenciaram o evento, ou acessar materiais da própria época; por fim, na última, somos narradores conscientes do ocorrido, podendo dar um testemunho direto do contexto. Quanto maior for a distância no tempo, maior a dificuldade de reconstituir a história; desde a época de Confúcio, pois, muito se perdera, e a obra do Mestre era o fio condutor do renascimento Han, permitindo uma consolidação da sociedade e da cultura por meio das instituições políticas. Hexiu se baseara no período de vida de Confúcio para propor um método de leitura sobre o passado e a evolução da história, cuja função se mantinha intimamente ligada à manutenção da moral e de uma vida ética. No final de seu texto, ele escreveu: ‘Em épocas em que a bondade está em declínio, e a justiça está desaparecendo, esse método pode ser usado para ordenar as relações humanas e classificar os diferentes tipos de pessoas. Com base nela, podemos administrar as leis, que vão criar ordem a partir do caos’[idem, 2004:88].

A teoria de Hexiu foi alvo de amplos debates na Historiografia Chinesa, que discutiu ao longo dos séculos o quanto as fontes podiam realmente informar – ou não – sobre o passado. Desde a antiguidade, os autores chineses começaram a desconfiar dos textos, cotejando passagens, criticando-as, comparando materiais. No século 19, enquanto Leopold von Ranke [1795-1886] propunha ideias problemáticas sobre uma verdade histórica, os historiadores da China já sabiam plenamente que essas ‘verdades’ eram construídas de acordo com os interesses mais variados, desde a simples difamação até uma agenda política definida. De qualquer forma, nessa confluência que se torna o debate historiográfico de hoje, no qual as tradições ocidentais e asiáticas se encontram – um exemplo excelente disso é o trabalho de Achem Mittag e Jorn Rusen [2004] –, a teoria de Hexiu pode ajudar a compreender nossas visões de passado, e as ilusões que criamos sobre os testemunhos e as fontes.

As visões sobre o passado
Somos da opinião de que a conceituação proposta por Zygmunt Bauman [Bauman, 2001], de que vivemos uma ‘modernidade líquida’, na qual se dissolvem as ideias, sentimentos e aspirações envolve, igualmente, a construção de uma consciência histórica. Duas interpretações, mais gerais sobre o passado, são encontradas no senso comum brasileiro: uma pouco preocupada com a ideia de história e de passado, ligada a um sentido imediatista e materialista dos eventos [o ‘Presentismo’, resenhado por Ramalho, 2013]; outra, conectada a uma ascendência histórica construída, que não discute criticamente as fontes, mas ao contrário, afirma-as de forma canônica e dogmática - seja nas visões religiosas ou não [Lima & Hypolito, 2019].

A primeira visão, aparentemente, cumpre o sistema proposto por Hexiu, defendendo que os processos históricos são mais bem visualizados por suas próprias testemunhas. Isso faz todo o sentindo, tendo em vista que sua compreensão sobre o tempo, como dissemos, é imediatista e contemporânea. Inseridos no dinâmico processo de liquidez, a compreensão – ou mesmo, o interesse – pelas fontes e pelo passado constitui um requisito desimportante para os personagens que a vivenciam. Como afirma François Hartog, ‘Sem futuro e sem passado, ele [o presente] produz diariamente o passado e o futuro de que sempre precisa, um dia após o outro, e valoriza o imediato’ [Hartog, 2013:148]. Mas se os testemunhos do presente são os ‘melhores’ [‘eu vi’], então, como avaliar a qualidade e a consciência das narrações produzidas por autores que não possuem um interesse historiográfico evidente? Se não há propósito em preservar, logo, não há uma busca por compreender os fenômenos em suas perspectivas mais amplas, propiciando fontes bastante limitadas de informação. Ademais, há igualmente uma leitura acrítica da informação [‘eu ouvi’]: a enorme massa de dados produzida pela mídia e na internet ensejou a proliferação de ‘memes’ e ‘fake news’, que contribuem significativamente na construção das visões de mundo.  Assim, como aceitar que o testemunho do tempo presente é o melhor? Como valorar a carga de ‘verdade histórica’ depositada na afirmação ‘eu estive lá, eu vi’?

Nesse sentido, a ideia de Hexiu se veria esvaziada: afinal, ele supunha que sua sociedade havia se desenvolvido desde a época de Confúcio, séculos antes; então como afirmar que a qualidade dos escritos históricos, bem como a consciência sobre eles, se aprimorara? Obviamente, ele enxergava isso do ponto de vista do triunfo confucionista – ou seja, que a adoção do Confucionismo como doutrina de Estado na dinastia Han significava uma restauração de uma ética política. O processo de cognição histórica seria, portanto, cumulativo; mas para isso, Hexiu precisava ignorar que durante séculos os acadêmicos precisaram lutar enfaticamente para fazer sobreviver às ideias de Confúcio, tendo inclusive que enfrentar o difícil período dos estados combatentes [Zhanguo shidai 戰國時代, 481-221 aec] e da dinastia Qin[221-206 aec], quando ser um intelectual discordante era, literalmente, um crime previsto por lei. A ideia de abolir o passado e reescrever a história, com base no tempo presente, foi inclusive uma das ideias mais polêmicas de legistas como Hanfeizi 韓非子[288-233 aec], um dos articuladores da ascensão de Qin [Bueno, 2015b].

Outro problema relacionado a essa visão presentista é de como seus cultores qualificam ou não os depoimentos históricos. Embora a autoridade do ‘eu vi’ devesse ser dominante, a construção das narrativas, por parte dos mesmos, é extremamente seletiva. Não sejamos ingênuos, toda a história é seletiva: mas é fascinante como o processo de escolha das informações é influenciado por razões sentimentais ou ideológicas. Alguém pode ser testemunha de um determinado evento ou contexto e, mesmo assim, ser desautorizado. É como se alguém dissesse ‘eu vi’, e o outro respondesse ‘mas eu não’; e consequentemente, aquele que ‘viu’ é qualificado de ‘ouvi’ ou ‘ouvi dizer’, mesmo que ambos sejam contemporâneos. Essa condição paradoxal revela que a escolha da ‘verdade’ dependerá, em grande parte, mais do desejo de asseveração do que propriamente do conhecimento; e o ‘método’ é afirmado e negado concomitantemente, provocando uma inevitável tensão.

A falácia do passado ideal
Os historiadores chineses já haviam notado a clara dificuldade de lidar com as fontes. Mesmo que uma testemunha afirmasse determinado ponto de vista sobre tal evento, dando garantias virtuais como ‘honra’ ou ‘compromisso’, mesmo assim ela poderia estar comprometida pelo ângulo de visão ou pela limitação em contemplar o problema em sua maior extensão. Ademais, existem condições coletivas de observação do passado. Pensadores como Lü Zuqian 呂祖謙já haviam denunciado que a visão de passado é influenciada, em grande parte, pela comodidade do presente: ‘Muitas pessoas, quando examinam a história, simplesmente olham os períodos de ordem e acham que estão em ordem; olham os períodos de desordem e acreditam que estão em desordem, observam um fato, e não sabem mais do que este mesmo fato os diz. Mas isso é realmente apreciação histórica?’ [Bueno, 2011:26-7] Assim, em momentos de crise, uma sociedade olharia seu passado como uma era dourada, inspiradora e superior, e o momento atual como de ‘decadência’; e quando o período é de pujança e felicidade, o passado passa a ser ruim, primitivo e atrasado, sendo o momento presente uma etapa de superação.

Esse tipo de interpretação embasa a segunda visão que propusemos, a de que o passado é dado como ideal, e calcado em fontes confiáveis e canônicas. Há aqui uma interessante diatribe com a noção trifásica do sistema de Hexiu; ‘ouvi dizer’ foi momento em que se construíram os alicerces de hoje, ou seja, uma fase de ouro; ‘eu ouvi’ e ‘eu vi’ deixam de ser testemunhos históricos válidos para serem substituídos por uma ideia de ‘verdade maior’, dado pelo escrito. Colocando de outra maneira: quanto mais antigo um testemunho for, mais verdadeiro ele será: e será verdadeiro porque sobreviveu, pois se fosse uma ‘mentira’, não sobreviveria. Desse modo, o ato de ‘ver’ passa a ser reproduzir, de forma dogmática, o que se ‘ouviu dizer’. Isso parece de uma ingenuidade tacanha, tão ruim ou pior do que a primeira visão que discutimos. Mas ela embasa o filtro histórico de milhares de pessoas na atual sociedade brasileira, que leem acriticamente informações do passado, como se fossem verdadeiras. Para elas, o momento atual é de decadência, e é necessário resgatar um contexto idealizado do passado. Desconhecendo as regras do anacronismo, elas projetam sobre o ‘antigo’ certas visões e problemas atuais, e julgam que as respostas do passado continuam a valer nos dias de hoje. Esse tipo de consideração é muito comum entre movimentos religiosos, mas encontra também uma profunda ressonância entre grupos políticos, que advogam a restauração do sistema por meio de intervenções calcadas em ideologias ou contextos do passado recente.

A visão idealizada do passado era um recurso muito comum na antiguidade. O próprio Confúcio propusera um processo de ‘decadência’ de sua civilização, expressa na ideia das três eras históricas [Liji 禮記, cap.9]. Hexiu inverteu esse paradigma, defendendo que após Confúcio, o ciclo se invertera. Pelo visto, pois, os cultores da visão decadentista precisam construir uma interpretação unívoca do passado, assentada em fontes ‘consolidadas’.  Ian Buruma e Avishai Margalith [2006] mostraram como uma interpretação desse gênero surgiu entre os escritores alemães românticos do século 19, que defendiam uma ‘superioridade espiritual’ em relação à ‘decadência moral e materialista’ do Ocidente. Ideias como essa fomentaram um ressentimento persistente, que deu origem aos movimentos Nazifascistas das décadas de 1930-40 e aos radicalismos religiosos orientais, que estereotipam o Ocidente como ‘fonte de todo o mal’, num movimento caracterizado como ‘Ocidentalismo’.

Não devemos estranhar, portanto, a revivência de movimentos radicais na atualidade, que pretendem combater a ‘liquidez contemporânea’ invocando concepções de ordem antigas. Na visão deles, a decadência de hoje é fruto de um ‘abandono’ do passado, invertendo a relação sistêmica de causa e efeito; não foi na antiguidade que os problemas surgiram, mas na ‘perda dela’. Nessa ordem de raciocínio, é como afirmar que períodos da história da humanidade em que ocorreu a escravidão, inquisições, guerras de extermínio e pandemias destruidoras fossem ‘melhores’, por haver uma ‘moral superior’. Obviamente, esse raciocínio não deveria se sustentar; mas a presença deste nas macrovisões de mundo da sociedade brasileira forçosamente desperta nossa atenção para como tem sido feito o trabalho de ensino de história.

Uma análise
Gostaria de exercitar a teoria de Hexiu, fazendo uma análise a partir de sua teoria trifásica, envolvendo as duas visões anteriormente discutidas. Partindo da afirmativa axiomática ‘eu vi’, poderíamos afirmar que o passado é menos interessante, ou mais problemático, que os dias de hoje; da negação desse ponto de vista, que valoriza a ideia de ‘ouvi dizer’, o passado torna-se referência de ordem e padrão cultural. Entre ambas, se estabelece uma relação antitética de cultura [ciência] x cultura [espírito], que se desdobra na forma como o passado é reinterpretado. Para exemplificar as dificuldades de ambas as visões, resgatamos da internet essa imagem, amplamente difundida [um ‘meme’], que mostra quantos aparelhos eletrônicos eram necessários, nos anos 1980, para compor um pretendido índice de ‘satisfação material’:


Fig.1 Aparelhos eletrônicos da década de 1980

Poderíamos incluir ainda o aparelho televisivo, ausente na figura: e todos esses aparelhos, hoje, cabem dentro de um único ‘smartphone’, cujo custo, drasticamente menor do que o de todos os aparelhos representados, tem se estabilizado graças à difusão da produção eletrônica em escala global. Numa perspectiva tecnológica e material [cultura-ciência], a situação atual seria ‘melhor’, em termos qualitativos, ao passado. O estágio metodológico ‘eu vi’, aqui, se apresentaria como ‘adequado’. No entanto, a simples análise da imagem não nos informa: os padrões de consumo acompanharam esse desenvolvimento, ou parcelas de sociedade se mantiveram afastadas desse desenvolvimento? Se o processo de construção histórica for cognitiva, então porque os indivíduos de hoje tem dificuldades em operar aparelhos antigos, como máquinas de escrever? A relação de eficiência desses recursos tecnológicos aumentou ou diminuiu o tempo para o ‘ócio criativo’ [Masi, 2001], necessário à reflexão intelectual? Por fim – e mostrando que as questões aqui são mais complicadas do que pensamos – o que determina a formação dos movimentos nostálgicos, que recuperam [e renovam] gostos musicais e artísticos de períodos como os anos 1980?

Em outro sentido, o segundo grupo defenderia que essa época teria sido ‘melhor’, pois diversas áreas da sociedade, tais como economia, segurança e cultura [cultura-espírito] estavam mais próximas de um ideal de ordem monoideológico. A própria imagem, mostrando uma profusão de invenções tecnológicas, revela que o período fora fértil em ideias e propósitos de engrandecimento. Em que momento, pois, que a motivação se perdeu? Se esse passado era ideal, porque acabou? O que faltou para a manutenção da ‘era de ouro’? No caso específico do Brasil, é relevante notar como a memória é recriada em função do propósito. Na mesma época em que todos esses equipamentos estavam disponíveis a uma parcela reduzida da sociedade, o poder aquisitivo dos brasileiros era nitidamente expresso pela nota de mil Cruzeiros, o famoso ‘Barão’, que em 1983 só podia comprar um chiclete.


Fig.2 Cédula de Mil Cruzeiros, que circulou entre 1978-1986.

Afirmar que essa época era menos violenta ou mais saudável é desconhecer o processo de formação das estatísticas brasileiras. Milhares de pessoas sofriam com doenças endêmicas, somente erradicadas ao longo de décadas de vacinação, decretadas pelo Estado; crimes étnicos ou de gênero não eram contabilizados simplesmente por não serem contemplados pela lei – e lembremos, mais uma vez, que as leis são feitas para combaterem os crimes, não são os crimes que são ‘inventados’ pela lei. Os índices de escolarização cobriam, somente, os que sabiam escrever e estavam na escola – consequentemente, quem não sabia escrever, e/ou não ia à escola, estava fora dos números; desse modo, alcançar níveis satisfatórios de educação era uma tarefa simples. Hoje, no entanto, alguns atores sociais acreditam que no passado não havia crimes desse tipo, pela ausência de estatísticas, que as vacinações não influenciaram o quadro da saúde, mas defendem que a educação era ótima – mascarando suas restrições estruturais. Assumindo, por apenas um momento, que esses argumentos tivessem alguma chance de ser verdadeiros, qual a razão então dessa sociedade idílica sucumbir ao tempo? Inevitavelmente, até os cultores dessa visão precisam admitir que existem falhas de transmissão na ideia de ‘ouvi dizer’.

Algumas conclusões interculturais
Nossa experiência envolveu analisar uma teoria historiográfica chinesa à luz da atual sociedade brasileira. Vale ressaltar que nosso expediente pode ser amplamente criticado em vários sentidos, mas o propósito aqui foi fazer um exercício de desconstrução histórica. Usando um instrumento teórico distinto dos usuais [‘ocidentais’], investigamos como as ideias correntes de ‘ver’, ‘ouvir’ ou ‘ouvi dizer’ estão profundamente enraizadas em nossa cultura como, ações indispensáveis à construção de conhecimento histórico, ainda que férteis em interpretações polissêmicas.

Em um ensaio anterior, propusemos que uma visão de cunho geral da historiografia chinesa reinterpreta o passado como um ‘ficção científica’[Bueno, 2011], valendo-se de fontes, mas também, da concepção crucial de crítica histórica, do uso da imaginação e da consciência de que todo modelo sobre o mesmo passado é uma idealização possível.

Assim, o que podemos aprender com os chineses sobre como ler o passado, e usar algumas de suas teorias em nossas investigações, pode ser resumido em três axiomas fundamentais:

1.A autoridade do testemunho é contradita no contexto: o fato do autor estar inserido no contexto tem implicações variadas. Um autor pode sempre ser fruto de seu contexto histórico, mas sua visão não necessariamente explicita os sentidos de sua escrita. Jornais publicados em países com regimes autoritários, por exemplo, são excelentes fontes para observar essas contradições: as informações tendem a ser positivas, mas não explicam a irrupção de ‘movimentos subversivos’ e de descontentamento. O mesmo pode ser dito em documentos religiosos: são idealizações sobre uma ideia de ordem e harmonia - isso significa que reproduzem uma ideia em vigor, ou que representam uma aspiração [e por isso, implicam que a sociedade esteja no caos]?

2.A autoridade do testemunho é medida pela sua capacidade crítica: quanto mais ilustrado, evidente e coerente for o estudo, mais chances eles tem de ser uma boa interpretação sobre um evento ou problema histórico. Notem, porém, que ele tem mais chances de ser crítico, mas nenhum estudo histórico é desprovido de função ou interesse. Todo o escrito histórico, na China tradicional, admitia a intervenção da imaginação como instrumento de leitura das fontes. A imaginação, racionalizada, aproximaria o estudo de um modelo explicativo satisfatório; mas fora de um balanço, ela descamba em fanatismo, fantasia ou esterilidade de ideias.

3.Desde a antiguidade, pois, os chineses aprenderam a contextualizar e contestar as fontes: e se não é isso que buscamos fazer hoje, depois de milênios tentando fazer história, então precisamos ‘ouvir dizer’ os antigos, ‘ouvir’ o mais novos, e ‘ver’ uma atitude de mudança na investigação e no ensino de história. A impressão cognitiva não é suficiente; a opinião sem embasamento é dogmática; a história, pois, só se realiza se for crítica e acompanhar as mudanças do mundo.

Mesmo Confúcio, que tinha suas impressões particulares sobre o passado, estava consciente dos cuidados que o historiador – e mesmo, o leitor comum – devem ter com a escrita e a compreensão da história. Em uma rápida passagem no Lunyu 論語, ele comentava: ‘Mesmo no passado, um historiador deixava um espaço em branco em seu texto [...] Agora, infelizmente, essas coisas não existem mais!’ [15:26]. Ciente de que a história resulta de um processo em construção, o olhar sobre o passado nunca pode ser concluído em absoluto. O espaço em branco é aquele onde anotaremos as transformações, as mudanças de opinião, as novas impressões sobre o passado. Essa pode ser, enfim, uma boa regra para ensaios historiográficos – algo que podemos aprender com os chineses de alguns milênios atrás.

Referências
André Bueno é professor adjunto de História Oriental da UERJ.

Imagens:
Fig.1: https://www.ndig.com.br/item/2010/03/um-nerd-dos-anos-80
Fig.2: encurtador.com.br/lpy58

Textos:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BUENO, André. ‘A história é uma ficção científica’ in Escritos de História Sínica. União da Vitória: Ebook Proj. Orientalismo, 2011, p.95-106.
BUENO, André. ‘Abolir o passado, reinventar a história: a escrita histórica de Hanfeizi na China do século III a.C.’ História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 8, n. 18, 14 set. 2015.
BUENO, André. “’Não invento, apenas transmito’: reinterpretando a escrita historiográfica de Confúcio”.  Anais da X Semana de história Política da UERJ. Rio de janeiro: UERJ, 2015a, p.251-260.
BUENO, André. Cem textos de história chinesa. União da Vitória: FAFIUV/Kaygangue, 2011.
BURUMA, Ian e MARGALIT, Avishai. Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos de seus inimigos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
Confúcio. Os Analectos [Lunyu]. Trad. Simon Leys. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CSIKSZENTMIHALYI, Mark. Readings in Han Chinese thought. Indianapolis: Hackett, 2006, p.84-8.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
LIMA, Iana Gomes de; HYPOLITO, Álvaro Moreira. ‘A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira’. Educ. Pesqui.,  São Paulo ,  v. 45,  e190901, 2019 .  
MASI, Domenico de. O Ócio criativo. São Paulo: Sextante, 2001.
MILLER, Harry. Gongyang Commentary on the Spring and Autumn Annals : a full translation. Nova Iorque: Palgrave, 2015.
MITTAG, Achim & RUSEN, Jorn [orgs.] Historical Truth, Historical Criticism, and Ideology: Chinese Historiography and Historical Culture from a New Comparative Perspective. Leiden: Brill, 2004.
RAMALHO, W. S. C. ‘O presentismo e a realidade brasileira em perspectiva’. História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 7, n. 14, p. 148-154, 3 set. 2013.

20 comentários:

  1. Uma questão que me interessou no seu texto foi esse aspecto de construção do passado, a concepção dos espaços em branco como forma de se voltar contra sua idealização. Algo do qual, segundo o texto, uma tradição historiográfica chinesa compartilha. Gostaria de saber como - o texto suscitou esse interesse - atualmente se dá essa visão dentro do ensino de história chinês, mais particularmente, a respeito do ensino da sua história recente, pós-revolucionária? Em suma, existe essa abertura para se ver a própria idealização da sua história recente no ensino dessa história?
    Leandro Mendanha e Silva

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    1. Caro Leandro, tudo bem?
      A China vive alguns dilemas em relação ao ensino de história, similares aos do restante do mundo. Há um conflito entre 'histórias oficias', que reproduzem uma visão de governo, e iniciativas críticas distintas dessa visão. Na China, na verdade, essa situação é milenar. Todavia, o processo de consciência histórica se processa deforma cumulativa no imaginário, dando margens a experiências singulares - como essa estratégia proposta hoje em nosso texto.
      abs,
      André

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  2. Caro, prof. Dr. André Bueno, primeiramente gostaria de agradecer ao trabalho constante com a História da China, que ainda não possui espaço consolidado nas instituições de ensino superior e não superior no Brasil.

    Minha pergunta:

    Nós podemos observar hoje, no Brasil, de forma evidente, um choque entre as narrativas sobre o passado nacional dentro do recorte temporal da ditadura militar.
    Por um lado, embora não os possa assim separar, temos um grupo principalmente marcado pelo discurso de gerações que viveram neste longo período, ou seja, reverberando hoje o "eu vi/vivi", mas que, no entanto, observa-se que não estavam nem nos centros de confrontos, entre os alvos do período, nem, como no caso de muitos, obtiveram informações ou conhecimento sobre os conflitos que se configuravam.
    É possível presenciar, portanto, uma sensação de que seu próprio corpo-mente seria uma "fonte" de experiência histórica, como dirá Jorn Rüssen, mas que, no entanto, pode estar convicta de ser segura e, portanto, acrítica, de modo que possa negar pelo "não ver", mas viver o período distante de suas complexidades e ideologias na macropolítica social.
    Assim temos em um outro lado, historiadores que confrontam-se com um cerceamento da liberdade teórico-metodológica, promovido por grupos que se nomeiam "sem partido" e outros que buscam propagar o revisionismo, ambos conseguindo adeptos que partem não só da História, mas das muitas outras ciências acadêmicas.
    Tais fenômenos contribuem para acirrar o debate entre narrativas e as possibilidades de sua manipulação de acordo com os interesses do presente sobre o passado, e, consequentemente, o futuro partindo da junção do presente e passado que se enseja reconfigurar ao menos nas mentalidades. Como, portanto, a História na educação reage à abertura das múltiplas narrativas históricas possíveis frente ao que se "viveu" enquanto discurso de verdade na mentalidade particular dos indivíduos, ainda que se confronte com as outras narrativas de refutação?

    Atenciosamente,

    Francisco de Freitas Gonçalves

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    1. Francisco,
      Agradeço pela sua leitura sensível e atenta do texto. Você captou com perfeição o intuito: é discutir, justamente, o potencial desse 'eu vi', que em muitos casos pode - mas não deveria - legitimar certas visões históricas. Se trata de um jogo de deslocamento, cujo intuito é tirar o lugar de acomodação de um discurso formal.
      Nesse sentido, exercitar múltiplas narrativas é sempre salutar - mesmo que discordantes - para fomentar uma consciência mais crítica. =)
      abs!
      André Bueno

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  3. André Bueno
    A China e sua civilização sempre contribuiu para a valorização de sua História. Confúcio como um educador tentou mostrar um caminho diferente para a sociedade Chinesa em um momento de crise que a China se encontrava em seu período (551-479 aec). Lembro de uma ideia de Confucio como sábio e educador empregava que era a Propensão em que se incentivava a vocação de seus alunos a determinadas áreas. Assim ate mesmo no atual contexto a China ainda aplica ideias desse sábio em sua metodologia de educação. Acredito então que essa propensão se estende na ideia de resgate da história da China, que a sua civilização sempre foi vista com um olhar preconceituoso e também carregada de esteriótipos como se observa ate agora com a crise do COVID 19. Assim a China diante de suas inúmeras obras sobre sua civilização a ideia de propensão sobre a sua própria História é mais aplicada que uma propensão da nossa própria história de nosso país? Ou seja, os chineses valorizam a sua história muito mais que os brasileiros?

    ELOIS ALEXANDRE DE PAULA

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    1. oi Elo!
      que bom ve-lo aqui! =)
      penso que essa consciência histórica chinesa é mais antiga e diferente. mas a história se transformou em um palco de luta política no Brasil recente, o que mostra sua valorização. Acho que em ambos os casos, as narrativas influenciam os povos; mas os chineses já tem um pouco mais de caminhada temporal nesse sentido.
      abração!!!

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  4. Rodrigo da Conceição Reis Telles18 de maio de 2020 às 22:36

    Agradeço e parabenizo a abordagem neste encontro eletrônico e a abertura para que possamos participar e elucidar as dúvidas , num panorama mais amplo , talvez até além do texto mas num escopo pedagógico alinhado, seria correto apontar que o obstáculo central de maior fluência em ensino da História oriental é a pouca amplitude na questão de concepção de divisão do tempo? Entendo que somos no ocidente embriagados ao longo da vida estudantil pré universitária com a visão stricto sensu de temporalidade dividida em passado , presente e futuro completamente eurocêntrica, que dificulta conceber uma antecedência oriental bem como uma temporalidade não tripartite em muitos dos povos e os desdobramentos correlatos.

    Ass: Rodrigo da Conceição Reis Telles

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    1. Oi Rodrigo,
      de fato, as experiências com a ideia de 'tempo' entre os asiáticos são vastas e diferenciadas. dê uma olhada nesse especial:
      https://journals.openedition.org/cultura/1269
      são artigos excelentes e que nos proporcionam um bom panorama sobre isso.
      saudações!
      André Bueno

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  5. Ana Beatriz Feltran Maia19 de maio de 2020 às 09:54

    Prezado prof. André, primeiramente gostaria de deixar meu apreço pelo texto, pois nos traz questões pertinentes para refletirmos sobre o pensamento histórico que ronda nosso cotidiano e sobre o papel do ensino de história nas escolas e universidades. No momento, tenho buscado me aproximar de estudos sobre historiografia oriental (chinesa e japonesa) para compreender suas especificidades e possíveis relações com a historiografia ocidental. Dessa forma, peço por gentileza se poderia explorar com maiores detalhes sobre a citada confluência do debate historiográfico das tradições historiográficas ocidentais e asiáticas, em especial se há essa confluência em relação à antítese apontada entre a ideia de história como cultura (ciência) e história como cultura (espírito)?
    Ana Beatriz Feltran Maia

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    1. Cara Ana,
      Obrigado pela pergunta! Penso que as tensões entre essas formas de fazer história se dão por conta da institucionalização científica da história, que propôs regras de validade e aferição; mas outras formas de "fazer história " continuam a existir, e com muita força, justamente pelo seu caráter não científico ou pseudo científico. Isso permanece inerente aos problemas de consciência histórica.
      Quanto às confluências, o livro de Rusen dá uma visão dessas propostas, é um bom ponto de partida.
      Abraço!

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    2. Ana Beatriz Feltran Maia21 de maio de 2020 às 10:24

      Muito obrigada pela resposta e indicação!

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  6. Prezado professor André Bueno, não seria possível ver na interpretação cumulativa sobre o processo de cognição histórica de Hexiu uma coerência com a experiência de histórica das mencionadas lutas para "fazer sobreviver as ideias de Confúcio", sobretudo no período dos estados combatentes e da dinastia Qin, em lugar de afirmar que ele "precisava ignorar que durante séculos os acadêmicos precisaram lutar enfaticamente"? O acúmulo de cognição histórica se daria também pela experiência política, sendo o triunfo do Confucionismo, com sua adoção como doutrina de Estado na dinastia Han uma prova empírica da sua teoria histórica. Ao testemunhar ("eu vi") a vitória confucionista sobre a proposta de abolir o passado e reescrever a história, Henxiu estaria registrando que Confúcio venceu [克段 Kefu] Hanfeizi, que "havia sido derrotado porque seus motivos estariam errados, ele seria um conspirador e havia tomado a iniciativa de atacar". Assim, os confucionistas teriam sido capazes de resistir e de se mostrarem mais fortes ou superiores e "se afirmar perante seus adversários".

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    1. Caro Guilherme,
      Sua pergunta é instigante, obrigado! A questão é saber o que Hexiu pensava sobre Qin, o que ele não fez - ou não foi salvo pela história. Pela teoria dele, após Confúcio, a sociedade deveria evoluir ininterruptamente, a guerra civil seria o conflito dessas forças, e Qin não deveria ocorrer. Mas o questionamento é muito válido, vou reformular o parágrafo pensando essa abertura. Obrigado! =)

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  7. Uma segunda pergunta: Você saberia dizer se existe alguma influência da interprtação de Hexiu sobre o Confucionismo, que divide a visão da história nos três momentos (ouvi dizer, eu ouvi e eu vi), na elaboração da historiografia japonesa como todo e, em especial, nas crônicas Kojiki e Nihon shoki?

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    1. Provavelmente sim, pois a cultura japonesa foi fortemente influenciada pela chinesa, e as primeiras crônicas japonesas foram estruturadas a partir de modelos chineses. No entanto, vemos indicações de que as influências fundamentais eram do Chunqiu de Confúcio e o Shiji de Sima Qian.
      Abraço!

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    2. Muito obrigado pelo retorno. Serão de grande valia para mim essas referências.

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  8. A utilização do termo consciência histórica, do autor Zygmunt Bauman, em uma perspectiva mais ampla, se propõe atacar aquela visão mais tradicional da história, que defende o distanciamento do objeto estudado ?

    Carlos eduardo ferreira alves

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    1. Oi Carlos,
      consciência histórica ou modernidade líquida? =)

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  9. Caro prof Bueno, muito me animou na leitura desta abordagem! Estou a cada dia mais me aprofundando nos estudos referentes a história da Ásia, particularmente com foco no Japão, contudo, sabemos a necessidade em entender a China e sua vasta e complexa história milenar.

    O dizer do historiador está diretamente vinculado à memória coletiva e à cultura, todavia, me surgiu uma questão: é possível que o soft power chinês sofra influência de Confúcio?

    Camila de Oliveira Hoffmann.

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    1. Oi Camila!
      Sim, com certeza! Uma dos movimentos intelectuais e filosóficos que mais cresce na China atual é o Novo Confucionismo [ou 'Novos acadêmicos'], que propõe um modelo de república confucionista no futuro, em substituição ao Marxismo. Xi Jinping tem estimulado bastante esse movimento, mesmo afirmando que é um marxista. Os conceitos confucionistas estão sendo disseminados com muita força, no sentido de compartilhar as responsabilidades do Estado com os cidadãos, o que tem modelado o caráter de muitas políticas públicas recentes.
      abraço! =)

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