CAVALGANDO PELA HISTÓRIA: TRANSMUTANDO O OLHAR DOMÉSTICO DAS RELAÇÕES DO ENSINO DE HISTÓRIA
No ensino contemporâneo existe um consenso de que valorizar o
conhecimento prévio do aluno, a interação
entre os fatos do cotidiano e o saber sistematizado estimula uma leitura
crítica da necessidade de se buscar uma melhor qualidade de vida no planeta através da aquisição de novos valores e atitudes [AMORIM et all.,
1999]. Este artigo apresenta uma reflexão sobre as relações de historiadores e professores de História
com a junção de fatos históricos narrados da perspectiva do Meio Ambiente. Em especial, ressaltamos a participação
histórica e primordial do cavalo, um animal extremamente importante no passado
e nos dias de hoje.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais [PCNs] para o
Ensino Médio [Brasil, 2002], existem explicações distintas
para o surgimento da vida e de sua diversidade na História da humanidade. Os
modelos científicos conviveram e convivem com outros sistemas explicativos. O
aprendizado da História, Geografia e Biologia devem permitir constatar esta
diversidade de pensamento e as limitações
das explicações da
dinâmica da
natureza viva. Considerando os PCNs, os currículos para o ensino de Ciências Naturais estão atrelados ao sistema
“lineano” de classificação
biológica [BRASIL, 2002]. O sistema criado por Linnaeus [1758] – está baseado em
idéias criacionistas, onde as unidades biológicas [espécies] são entidades
independentes e imutáveis.
Antes da chamada
“Revolução Neolítica”, o homem se limitava a consumir os vegetais e animais que
estavam ao seu alcance. No período Neolítico, por outro lado, o homem torna-se
produtor, criando fontes de alimento. É por isso que esse momento em que o
homem transforma um animal selvagem em um instrumento de produção foi chamado
de "revolução neolítica". Tanto que, embora o Neolítico tenha sido
classicamente considerado um novo tempo que trouxe uma nova tecnologia, isto é,
pedra polida e cerâmica, essa fase da Humanidade é vista sob uma perspectiva
diferente nos tempos modernos. Essas mudanças tecnológicas empalidecem diante
da mudança radical que surge nas relações entre os homens que o rodeiam. Esse
duplo fenômeno, domesticação e agricultura, continua a desempenhar um papel
econômico importante em nossos dias e continuará a desempenhar no futuro. Mas
afinal, algum professor[a] de História já explicou sobre a importância do
processo de introdução de novas espécies no Brasil? Das transformações no
âmbito social, cultural, biológico e econômico ocasionados pela domesticação de
algum animal?
O cavalo é um
mamífero, pertencente ao gênero
Equus e seus ancestrais datam de 55 milhões de anos atrás [CINTRA, 2011]. Há
controvérsias sobre o surgimento do Equus caballus, alguns acreditam que seu
desenvolvimento seguiu uma linha evolutiva, enquanto outros afirmam que a
variedade de espécies
existentes representava estágios descontínuos que são erroneamente
correlacionados. Há cerca de 11.000 anos, o gênero Equus se difundiu por todo o mundo,
originando as mais diferentes espécies, influenciadas provavelmente por
temperatura, clima,
altitude, solo e alimentação: o
Equus caballus [cavalo doméstico], o Equus heminonus [Onagro e Kiang], o Equus
asinus [jumento] e o Equus zebra [zebra]. As transformações anatômicas
gradativas que os cavalos perpassaram, de acordo com a teoria evolucionista, formou um
indivíduo morfologicamente pronto para ser domesticado pelos humanos,
principalmente, devido à sua utilidade para o transporte [KELEKNA, 2008].
Vamos adotar o cavalo
como animal escolhido para exemplificar a introdução de um animal extremamente
importante, visando ainda, esclarecer o porquê de denominarmos animal doméstico
a um animal que não vive dentro de casa. A descoberta da domesticação,
juntamente com a agricultura, é considerada uma das maiores descobertas da
humanidade. Graças a domesticação, os bases da economia humana passaram por uma
transformação fundamental. Com efeito, esse fenômeno marcou a transição de uma
economia puramente predatória e consumidora de espécies selvagens para uma
economia de produção, que mudou profundamente os modos de vida das comunidades
que a descobriram ou a aceitaram. Desde suas origens até os dias atuais, o fato
de domesticação deixou uma marca indelével na História do homem. Todas as
atividades humanas sofreram profundas alterações [CROSBY, 2011].
A domesticação
envolve, portanto, a transformação dos animais selvagens em algo mais útil para
os seres humanos. Os animais verdadeiramente domesticados tem várias diferenças
em relação aos seus ancestrais selvagens. Essas diferenças resultam de 2
processos: a seleção humana dos animais mais úteis e respostas evolutivas
automáticas dos animais à alteração das forças da seleção natural que agem em
ambientes humanos, quando comparados com os ambientes selvagens [DIAMOND, 2013,
p.159]. A domesticação dos cavalos que começou em 400 a.C mudou os métodos de
guerra. Permitiam que os homens em cima de cavalos batessem e fugissem dos seus
adversários, pois percorriam distancias muito maiores do que a pé [ibidem,
p.76]. O cavalo exerceu um papel
importante na formação
econômica,
social e política mundial. A influência em
diferentes regiões do mundo nos revela sua importância sobre as civilizações e na formação do mundo atual. Antes do desenvolvimento de
armas de fogo, o cavalo foi de importância crucial para a guerra, e antes
da invenção do
motor à vapor, ele era a forma mais rápida e confiável de transporte em
terra [KELEKNA 2008].
Sugestão
de atividade que pode ser feita em sala de aula
Os cavalos
desapareceram das Américas por volta do período terciário, por motivos
desconhecidos, desenvolvendo-se na Europa e na Ásia, voltando a habitar as
Américas somente a partir do século XVI, trazido pelos colonizadores
europeus. A principal vantagem dos colonizadores ao virem desbravar o Novo
Mundo eram os seus cavalos [DIAMOND, 2013, p.76].
Enquanto os livros
didáticos de História trazem a percepção voltada aos feitos dos homens, ao
analisarmos o papel da natureza e da ciência nos períodos enquanto fatos
presentes na História, podemos casar as informações do passado com as memórias
presentes, trazendo discussões através de imagens, fotos, filmes e fontes escritas.
Pensando nessa
perspectiva, recortamos fontes datadas do século XVI de alguns colonizadores
europeus, para exemplificar como eles relatavam em seus diários, crônicas,
cartas e tratados a introdução e valorização do cavalo. O jesuíta português
Fernão Cardim embarcou para o Brasil em 1583 no cargo de secretário do padre
visitador e escreveu a sua obra intitulado Tratados da Terra e da Gente do
Brasil publicada em 1601. Cardim relata que “[...] dentre os animais e plantas
trazidos, o cavalo era destaque. Chegavam a valer duzentos a trezentos
cruzados.” [CARDIM, 1925, p.145].
O senhor de engenho
português Gabriel Soares de Sousa enquanto esteve na Bahia, em meados de 1565,
informou na sua obra de 1587, intitulada Tratados descritivos do Brasil, que:
“As éguas foram à
Bahia de Cabo Verde, das quais se inçou a terra, de modo que, custando em
princípio a sessenta mil-réis e mais, pelo que levaram lá muitas todos os anos
e cavalos, multiplicaram de uma tal maneira, que valem agora a dez e a doze
mil-réis; e há homens que têm em suas granjearias quarenta e cincoenta, as
quais parem cada ano; e esperam o cavalo poldras de um ano, como as vacas, e
algumas vezes parem duas crianças juntas. São tão formosas as éguas da Bahia
como as melhores da Espanha, das quais nascem formosos cavalos e grandes
corredores, os quais, até a idade de cinco anos, são bem acondicionados, e pela
maior parte como passam daqui criam malícia e fazem-se mui desassossegados, mal
arrendados e ciosos; assim eles como as éguas andam desferrados, mas não faltam
por isso em nada por serem mui duros de cascos. Da Bahia levam os cavalos a
Pernambuco por mercadoria, onde valem duzentos e trezentos cruzados e mais
[SOUSA, 1971, p.164]”
O jesuíta espanhol
José de Anchieta enquanto esteve nos primeiros aldeamentos da Baía de Porto
Seguro no Brasil em 1585, escreveu:
“É terra pobre por não
ter engenhos de assucar, ainda que é fertil de farinha e algodão e os cavalos
estão chegando a criar, porém se vai cada dia despovoando, por estarem já as
terras muito gastas e cansadas, e não se podem estender pela terra dentro por
causa dos Guaimurés.”[ANCHIETA, 1988, p.426].
Esse exercício de
leitura de fontes escritas por colonizadores no século XVI estimula, para além
da memória, outras atividades cerebrais. Podemos perceber que algumas palavras
eram escritas de formas diferentes das atuais, o dinheiro não era o que
utilizamos atualmente, a percepção inteligível de que havia locais específicos
e animais apropriados para a criação dos engenhos de açúcar e muitos outros
debates podem ser abertos a partir da leitura desses trechos mencionados.
Ampliar
os assuntos para dimensionar as consequências
O triunfo dos
colonizadores europeus, em introduzir cavalos na América portuguesa, teria sito
mais lento quando comparado aos europeus na África do Sul, já que lá vivia
animais maiores e bem mais perigosos [CROSBY, 2011, p.242]. Paralelo a esse
pensamento, a perca de florestas, rios e matas ocasionou a diminuição de
espécies de animais e plantas, além do que, o genocídio em massa que a América
portuguesa sofreu com a colonização europeia também é algo a se pontuar no fim
de uma aula dessas.
Quando ampliamos os
assuntos, fazendo com que as matérias de Biologia, Geografia, Cartografia e
História conversem entre si, podemos atingir o interesse do aluno com mais
voracidade. O exercício de ensinar algum fato histórico do passado, começando a
explicar desde os primórdios e comparar até o tempo presente, facilita na
memorização e aprendizagem do conteúdo. O cavalo, como foi o animal explanado
durante todo o percalço do texto, também pode ser trazido para o tema atual.
Com a construção do pensamento de preservação ambiental e direitos dos animais,
atualmente, existem leis em diversas cidades e estados brasileiros que proíbem
o uso de carroças e charretes. Que tal finalizar esse conteúdo pedindo uma
tarefa de casa ao aluno, para que faça uma redação sobre a primeira vez que ele
viu um cavalo de perto?
Nós, enquanto
educadores e professores, precisamos explorar outros sentidos nos alunos.
Pensar na História como uma linha do tempo ocupada por datas e fatos é muito
amplo. Que tal dimensionarmos e focalizarmos em algum alimento, animal,
paisagem ou apetrecho material? Assim conseguimos ativar a memória afetiva,
emocional e lúdica de cada pessoa que estiver presente.
Referências
Me. Anelisa Mota
Gregoleti é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Nathália Moro é
mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Dr. Christian Fausto
Moraes dos Santos [orientador] é professor pós-doutor em História das Ciências,
professor da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de História da
Universidade Estadual de Maringá [UEM], bolsista produtividade do CNPq e
orientador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC – UEM].
AMORIM, D. S.; SISTO,
D. R.; LOPES, D. R. N.; BRAGA, J. A.; ALMEIDA, V. L. F. O. Diversidade
Biológica e evolução:
uma nova concepção
para o ensino. In: BARBIERI, M. R. [Org.]. Título do livro. Ribeirão Preto: Holos, 1999.
ANCHIETA, José de.
Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Universidade de São Paulo, 1988.
BRASIL. Ministério da
Educação,
Secretaria de Educação
Médio e Tecno- lógica.
Parâmetros
curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/ SEMTEC, 2002.
CARDIM, Fernão.
Tratados da terra e gente do Brasil. Introducções e notas de Baptista Caetano,
Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia,
1925.
CINTRA, A. G. C. O
cavalo: características, manejo e alimentação. Editora Roca – São Paulo, 2011, p. 3-12.
CROSBY, A. W.
Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. Trad. José
Augusto Ribeiro e Carlos Afonso Malferrarri. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
DIAMOND, J. Armas,
Germes e Aço – Os destinos das sociedades humanas. Editora Recor - Rio de
Janeiro, São Paulo, 2013.
HARARI, Yuval Noah.
Sapiens – Uma breve história da humanidade / Yuval Noah Harari; tradução
Janaína Marcoantonio. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018.
KELEKNA, Pita The Politico-Economic Impact of the Horse on Old World
Cultures. In: MAIR, V. H. The Prehistory of the Silk Road. Ed. Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, 2008, p. 1-31.
LINNAEUS, C. Systema naturae per regna tria naturae. Editio X. Regnum Animale. Holmiae.
1758.
SOUSA, Gabriel Soares
de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Edusp, 1971.
Olá Anelisa e Nathália, bastante interessante a proposta de vocês, tendo em vista que os cavalos tiveram enorme relevância no contexto de nossa expansão territorial, notadamente nos séculos XVII e XVIII. Como contribuição para esta pesquisa sugiro inserir o estudo do uso dos cavalos tanto para a ocupação de Mato Grosso como pelas disputas ibéricas neste território. A esse respeito indico a obra de Maria de Fátima Costa: “História de um país inexistente”. No qual ela trata sobre a presença do cavalo pantaneiro. Diante da domesticação dos cavalos, como você aborda a questão em relação ao uso dos cavalos pelos índios Guaicurus (índios cavaleiros) no Rio Paraguai, tidos como “Guardiões da fronteira”?
ResponderExcluirNey Iared Reynaldo
Olá Ney! Muito obrigada pela sua leitura!
ResponderExcluirInfelizmente, não dominamos o suficiente para conseguir explanar e responder pontualmente a sua questão. Agradecemos as sugestões de leitura, foram anotadas e iremos pesquisar mais sobre o assunto.
Atenciosamente,
Anelisa Gregoleti e Nathália Moro.