Anelisa Mota Gregoleti e Nathália Moro 1


CAVALGANDO PELA HISTÓRIA: TRANSMUTANDO O OLHAR DOMÉSTICO DAS RELAÇÕES DO ENSINO DE HISTÓRIA




No ensino contemporâneo existe um consenso de que valorizar o conhecimento prévio do aluno, a interação entre os fatos do cotidiano e o saber sistematizado estimula uma leitura crítica da necessidade de se buscar uma melhor qualidade de vida no planeta através da aquisição de novos valores e atitudes [AMORIM et all., 1999]. Este artigo apresenta uma reflexão sobre as relações de historiadores e professores de História com a junção de fatos históricos narrados da perspectiva do Meio Ambiente. Em especial, ressaltamos a participação histórica e primordial do cavalo, um animal extremamente importante no passado e nos dias de hoje. 

Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais [PCNs] para o Ensino Médio [Brasil, 2002], existem explicações distintas para o surgimento da vida e de sua diversidade na História da humanidade. Os modelos científicos conviveram e convivem com outros sistemas explicativos. O aprendizado da História, Geografia e Biologia devem permitir constatar esta diversidade de pensamento e as limitações das explicações da dinâmica da natureza viva. Considerando os PCNs, os currículos para o ensino de Ciências Naturais estão atrelados ao sistema “lineano” de classificação biológica [BRASIL, 2002]. O sistema criado por Linnaeus [1758] – está baseado em idéias criacionistas, onde as unidades biológicas [espécies] são entidades independentes e imutáveis.

Antes da chamada “Revolução Neolítica”, o homem se limitava a consumir os vegetais e animais que estavam ao seu alcance. No período Neolítico, por outro lado, o homem torna-se produtor, criando fontes de alimento. É por isso que esse momento em que o homem transforma um animal selvagem em um instrumento de produção foi chamado de "revolução neolítica". Tanto que, embora o Neolítico tenha sido classicamente considerado um novo tempo que trouxe uma nova tecnologia, isto é, pedra polida e cerâmica, essa fase da Humanidade é vista sob uma perspectiva diferente nos tempos modernos. Essas mudanças tecnológicas empalidecem diante da mudança radical que surge nas relações entre os homens que o rodeiam. Esse duplo fenômeno, domesticação e agricultura, continua a desempenhar um papel econômico importante em nossos dias e continuará a desempenhar no futuro. Mas afinal, algum professor[a] de História já explicou sobre a importância do processo de introdução de novas espécies no Brasil? Das transformações no âmbito social, cultural, biológico e econômico ocasionados pela domesticação de algum animal?

O cavalo é um mamífero, pertencente ao gênero Equus e seus ancestrais datam de 55 milhões de anos atrás [CINTRA, 2011]. Há controvérsias sobre o surgimento do Equus caballus, alguns acreditam que seu desenvolvimento seguiu uma linha evolutiva, enquanto outros afirmam que a variedade de espécies existentes representava estágios descontínuos que são erroneamente correlacionados. Há cerca de 11.000 anos, o gênero Equus se difundiu por todo o mundo, originando as mais diferentes espécies, influenciadas provavelmente por temperatura, clima, altitude, solo e alimentação: o Equus caballus [cavalo doméstico], o Equus heminonus [Onagro e Kiang], o Equus asinus [jumento] e o Equus zebra [zebra]. As transformações anatômicas gradativas que os cavalos perpassaram, de acordo com a teoria evolucionista, formou um indivíduo morfologicamente pronto para ser domesticado pelos humanos, principalmente, devido à sua utilidade para o transporte [KELEKNA, 2008].

Vamos adotar o cavalo como animal escolhido para exemplificar a introdução de um animal extremamente importante, visando ainda, esclarecer o porquê de denominarmos animal doméstico a um animal que não vive dentro de casa. A descoberta da domesticação, juntamente com a agricultura, é considerada uma das maiores descobertas da humanidade. Graças a domesticação, os bases da economia humana passaram por uma transformação fundamental. Com efeito, esse fenômeno marcou a transição de uma economia puramente predatória e consumidora de espécies selvagens para uma economia de produção, que mudou profundamente os modos de vida das comunidades que a descobriram ou a aceitaram. Desde suas origens até os dias atuais, o fato de domesticação deixou uma marca indelével na História do homem. Todas as atividades humanas sofreram profundas alterações [CROSBY, 2011]. 

A domesticação envolve, portanto, a transformação dos animais selvagens em algo mais útil para os seres humanos. Os animais verdadeiramente domesticados tem várias diferenças em relação aos seus ancestrais selvagens. Essas diferenças resultam de 2 processos: a seleção humana dos animais mais úteis e respostas evolutivas automáticas dos animais à alteração das forças da seleção natural que agem em ambientes humanos, quando comparados com os ambientes selvagens [DIAMOND, 2013, p.159]. A domesticação dos cavalos que começou em 400 a.C mudou os métodos de guerra. Permitiam que os homens em cima de cavalos batessem e fugissem dos seus adversários, pois percorriam distancias muito maiores do que a pé [ibidem, p.76].  O cavalo exerceu um papel importante na formação econômica, social e política mundial. A influência em diferentes regiões do mundo nos revela sua importância sobre as civilizações e na formação do mundo atual. Antes do desenvolvimento de armas de fogo, o cavalo foi de importância crucial para a guerra, e antes da invenção do motor à vapor, ele era a forma mais rápida e confiável de transporte em terra [KELEKNA 2008].

Sugestão de atividade que pode ser feita em sala de aula
Os cavalos desapareceram das Américas por volta do período terciário, por motivos desconhecidos, desenvolvendo-se na Europa e na Ásia, voltando a habitar as Américas somente a partir do século XVI, trazido pelos colonizadores europeus. A principal vantagem dos colonizadores ao virem desbravar o Novo Mundo eram os seus cavalos [DIAMOND, 2013, p.76]. 

Enquanto os livros didáticos de História trazem a percepção voltada aos feitos dos homens, ao analisarmos o papel da natureza e da ciência nos períodos enquanto fatos presentes na História, podemos casar as informações do passado com as memórias presentes, trazendo discussões através de imagens, fotos, filmes e fontes escritas.

Pensando nessa perspectiva, recortamos fontes datadas do século XVI de alguns colonizadores europeus, para exemplificar como eles relatavam em seus diários, crônicas, cartas e tratados a introdução e valorização do cavalo. O jesuíta português Fernão Cardim embarcou para o Brasil em 1583 no cargo de secretário do padre visitador e escreveu a sua obra intitulado Tratados da Terra e da Gente do Brasil publicada em 1601. Cardim relata que “[...] dentre os animais e plantas trazidos, o cavalo era destaque. Chegavam a valer duzentos a trezentos cruzados.” [CARDIM, 1925, p.145].

O senhor de engenho português Gabriel Soares de Sousa enquanto esteve na Bahia, em meados de 1565, informou na sua obra de 1587, intitulada Tratados descritivos do Brasil, que:

“As éguas foram à Bahia de Cabo Verde, das quais se inçou a terra, de modo que, custando em princípio a sessenta mil-réis e mais, pelo que levaram lá muitas todos os anos e cavalos, multiplicaram de uma tal maneira, que valem agora a dez e a doze mil-réis; e há homens que têm em suas granjearias quarenta e cincoenta, as quais parem cada ano; e esperam o cavalo poldras de um ano, como as vacas, e algumas vezes parem duas crianças juntas. São tão formosas as éguas da Bahia como as melhores da Espanha, das quais nascem formosos cavalos e grandes corredores, os quais, até a idade de cinco anos, são bem acondicionados, e pela maior parte como passam daqui criam malícia e fazem-se mui desassossegados, mal arrendados e ciosos; assim eles como as éguas andam desferrados, mas não faltam por isso em nada por serem mui duros de cascos. Da Bahia levam os cavalos a Pernambuco por mercadoria, onde valem duzentos e trezentos cruzados e mais [SOUSA, 1971, p.164]”

O jesuíta espanhol José de Anchieta enquanto esteve nos primeiros aldeamentos da Baía de Porto Seguro no Brasil em 1585, escreveu:

“É terra pobre por não ter engenhos de assucar, ainda que é fertil de farinha e algodão e os cavalos estão chegando a criar, porém se vai cada dia despovoando, por estarem já as terras muito gastas e cansadas, e não se podem estender pela terra dentro por causa dos Guaimurés.”[ANCHIETA, 1988, p.426].

Esse exercício de leitura de fontes escritas por colonizadores no século XVI estimula, para além da memória, outras atividades cerebrais. Podemos perceber que algumas palavras eram escritas de formas diferentes das atuais, o dinheiro não era o que utilizamos atualmente, a percepção inteligível de que havia locais específicos e animais apropriados para a criação dos engenhos de açúcar e muitos outros debates podem ser abertos a partir da leitura desses trechos mencionados. 
Ampliar os assuntos para dimensionar as consequências
O triunfo dos colonizadores europeus, em introduzir cavalos na América portuguesa, teria sito mais lento quando comparado aos europeus na África do Sul, já que lá vivia animais maiores e bem mais perigosos [CROSBY, 2011, p.242]. Paralelo a esse pensamento, a perca de florestas, rios e matas ocasionou a diminuição de espécies de animais e plantas, além do que, o genocídio em massa que a América portuguesa sofreu com a colonização europeia também é algo a se pontuar no fim de uma aula dessas.

Quando ampliamos os assuntos, fazendo com que as matérias de Biologia, Geografia, Cartografia e História conversem entre si, podemos atingir o interesse do aluno com mais voracidade. O exercício de ensinar algum fato histórico do passado, começando a explicar desde os primórdios e comparar até o tempo presente, facilita na memorização e aprendizagem do conteúdo. O cavalo, como foi o animal explanado durante todo o percalço do texto, também pode ser trazido para o tema atual. Com a construção do pensamento de preservação ambiental e direitos dos animais, atualmente, existem leis em diversas cidades e estados brasileiros que proíbem o uso de carroças e charretes. Que tal finalizar esse conteúdo pedindo uma tarefa de casa ao aluno, para que faça uma redação sobre a primeira vez que ele viu um cavalo de perto?

Nós, enquanto educadores e professores, precisamos explorar outros sentidos nos alunos. Pensar na História como uma linha do tempo ocupada por datas e fatos é muito amplo. Que tal dimensionarmos e focalizarmos em algum alimento, animal, paisagem ou apetrecho material? Assim conseguimos ativar a memória afetiva, emocional e lúdica de cada pessoa que estiver presente.

Referências
Me. Anelisa Mota Gregoleti é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Nathália Moro é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos [orientador] é professor pós-doutor em História das Ciências, professor da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá [UEM], bolsista produtividade do CNPq e orientador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC – UEM].

AMORIM, D. S.; SISTO, D. R.; LOPES, D. R. N.; BRAGA, J. A.; ALMEIDA, V. L. F. O. Diversidade Biológica e evolução: uma nova concepção para o ensino. In: BARBIERI, M. R. [Org.]. Título do livro. Ribeirão Preto: Holos, 1999.
ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1988.
BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Médio e Tecno- lógica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/ SEMTEC, 2002.
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introducções e notas de Baptista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro: J. Leite & Cia, 1925.
CINTRA, A. G. C. O cavalo: características, manejo e alimentação. Editora Roca – São Paulo, 2011, p. 3-12.
CROSBY, A. W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. Trad. José Augusto Ribeiro e Carlos Afonso Malferrarri. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 
DIAMOND, J. Armas, Germes e Aço – Os destinos das sociedades humanas. Editora Recor - Rio de Janeiro, São Paulo, 2013.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade / Yuval Noah Harari; tradução Janaína Marcoantonio. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2018. 
KELEKNA, Pita The Politico-Economic Impact of the Horse on Old World Cultures. In: MAIR, V. H. The Prehistory of the Silk Road. Ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2008, p. 1-31.
LINNAEUS, C. Systema naturae per regna tria naturae. Editio X. Regnum Animale. Holmiae. 1758.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Edusp, 1971.

2 comentários:

  1. Olá Anelisa e Nathália, bastante interessante a proposta de vocês, tendo em vista que os cavalos tiveram enorme relevância no contexto de nossa expansão territorial, notadamente nos séculos XVII e XVIII. Como contribuição para esta pesquisa sugiro inserir o estudo do uso dos cavalos tanto para a ocupação de Mato Grosso como pelas disputas ibéricas neste território. A esse respeito indico a obra de Maria de Fátima Costa: “História de um país inexistente”. No qual ela trata sobre a presença do cavalo pantaneiro. Diante da domesticação dos cavalos, como você aborda a questão em relação ao uso dos cavalos pelos índios Guaicurus (índios cavaleiros) no Rio Paraguai, tidos como “Guardiões da fronteira”?
    Ney Iared Reynaldo

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  2. Olá Ney! Muito obrigada pela sua leitura!
    Infelizmente, não dominamos o suficiente para conseguir explanar e responder pontualmente a sua questão. Agradecemos as sugestões de leitura, foram anotadas e iremos pesquisar mais sobre o assunto.

    Atenciosamente,
    Anelisa Gregoleti e Nathália Moro.

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