DEMOCRACIA, POPULISMO E PÓS-VERDADE: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS DO ENSINO DA HISTÓRIA
A pesquisa Datafolha,
publicada em 1 de janeiro de 2020 pelo jornal Folha de São Paulo, apontou que
62% dos brasileiros consideram a democracia como a melhor forma de governo.
Apesar da defesa à democracia ainda ser majoritária entre os brasileiros
adultos, em comparação a última pesquisa feita pelo Datafolha, desenvolvida na
semana do primeiro turno da eleição de 2018, houve um recuo de sete pontos
percentuais [MAGALHÃES, 2020]. Malgrado algumas ressalvas em relação à pesquisa
que não cabe agora discutir, o certo é que no primeiro ano do mandato de Jair
Messias Bolsonaro como Presidente da República o apoio à democracia entrou em
um quadro de retração. Não sabemos se aponta para uma tendência ou representa,
no entanto, apenas um encolhimento circunstancial já observado em outros
momentos de nossa história. Chama a atenção, contudo, que 38% dos entrevistados
demostraram ter dúvida de ser a democracia a melhor forma de governo. Nossa
hipótese é que a eleição de Bolsonaro e todo o fortalecimento de um discurso de
extrema direita no Brasil dos últimos anos traduz, em última instância, um
enfraquecimento global do modelo de democracia liberal. Também podemos afirmar
que o governo de Bolsonaro expressa o fortalecimento do populismo autoritário
no cenário político brasileiro. Desta sorte, diante deste cenário, segundo
nossa tese, o ensino da história é desafiado a mobilizar novas abordagens
metodológicas.
A
crise do capitalismo liberal e o populismo
O que geralmente os cientistas
políticos chamam de democracia em pleno direito é a democracia liberal.
Significa, a rigor, proteções fortes para liberdades básicas, tratamento justo
das questões raciais e das minorias culturais, estado de direito robusto, no
qual todos os cidadãos são iguais nos termos da lei e ninguém está acima dela,
um judiciário independente, instituições policiais confiáveis, mecanismos de
controle da conduta dos altos
funcionários do governo, transparência pública e uma
sociedade civil ativa construída através de associações independentes,
movimentos sociais, universidades e imprensa livre. Esses elementos constituem
algo mais próximo do pacote político completo de uma boa democracia.
[DAHL,2012].
Segundo Larry Jay
Diamond [2019], professor de Sociologia e Ciência Política da Universidade de
Stanford, estamos vivendo, no início do século XXI, uma onda reversa desse
modelo clássico de democracia liberal. Até o ano de 2006 o mundo assistiu três
décadas de progresso democrático. Entretanto, de 2006 a 2017 a democracia
diminuiu de 58% de países com população acima de um milhão para 51%. Larry
Diamond [2019] chama esse processo de “recessão democrática” do mundo atual,
inclusive com o declínio das liberdades em países de democracia historicamente
mais consolidada. É neste espaço de crise da democracia liberal que o apelo
populista se estrutura, especialmente a partir da frustração de promessas não
cumpridas pelo governo democrático.
Alguns autores, dentre
os quais Yascha Mounk [2018], usam o conceito de “democracia iliberal” para
caracterizar a atuação dos líderes populistas. Isto é, os políticos populistas
mantêm, segundo essas interpretações, a estrutura da democracia intacta, mas
ameaçam as liberdades individuais que limitam o poder discricionário do Estado.
Jean-Werner Müller [2016], historiador e professor da Universidade de
Princeton, contudo, critica o uso do conceito de “democracia iliberal”. Segundo
o autor, os populistas se posicionam contra o liberalismo, mas desejam manter a
ideia de serem democráticos. Logo, o uso do conceito de “democracia iliberal”
pode ser interessante para a própria afirmação dos líderes populistas. Segundo
esta perspectiva, na verdade, o populismo seria uma distorção do processo
democrático. Desta sorte, o autor prefere utilizar a designação de “democracia
defeituosa” para explicar o processo de corrupção da lógica democrática pela
política populista [MÜLLER,2016].
Uma democracia
corrompida traduz, em determinados aspectos, o que seus cidadãos pensam e
valorizam. A corrupção endêmica no governo, a ganância estrutural dos políticos
e oportunismos de toda sorte destroem não somente a confiança no governo, mas
igualmente entre os próprios cidadãos. Em última instância, fragmenta a
sociedade e contribui para sustentar a retórica populista do “nós contra eles”
[DIAMOND,2019]. Uma democracia saudável, por sua vez, incentiva a cultura do
engajamento cívico e da governança responsável. Há, sem dúvida, uma maior
confiança entre as pessoas e dessas em relação ao governo e uma maior facilidade
de desenvolver associações que busquem promover melhorias no processo
democrático. Não há, contudo, democracia no mundo que seja perfeita e que não
encontre diversos problemas. Como salientou Pierre Rosanvallon [2011], os
processos democráticos são marcados por fraturas e brechas inevitáveis. Logo,
não existe um modelo de democracia a ser usado como exemplo. No entanto, toda
democracia exige, além dos pontos ressaltados acima, o pluralismo como condição
precípua [DAHL,2012]. Em outros termos, exige o respeito mútuo e o
reconhecimento da legitimidade dos adversários políticos. Os populistas,
todavia, costumam mobilizar seus seguidores contra uma série de inimigos a
serem confrontados.
De fato, como
apontamos acima, uma das características do populismo é a visão crítica ao
pluralismo democrático. Em outros termos, os populistas acreditam ser os únicos
representantes do povo e consideram seus concorrentes como parte de uma
política imoral e corrupta. Assim, os populistas mobilizam uma concepção de
política baseada em uma representação holística. Isto é, um argumento pars pro
toto, uma espécie de reivindicação de representação exclusiva: pensar em nome
do povo com um todo [MÜLLER,2016]. Naturalmente, essa visão idealizada acerca
do “povo” encontra suas limitações nas opiniões divergentes. Entretanto, os
populistas produzem uma distinção específica das pessoas. De fato, somente quem
se alinha as ideias do populista deve ser levado em consideração. Isto explica,
em certo sentido, a postura crítica de Bolsonaro em relação às pesquisas de
intenção de voto durante a campanha eleitoral de 2018. É inconcebível para um
populista que sua visão de representação do povo encontre brechas. Desta sorte,
a opção é atacar as instituições de pesquisas ou mesmo a estrutura do sistema
eleitoral. Não é por acaso que Bolsonaro, no dia 28 de setembro de 2018, já
próximo do fim do primeiro turno das eleições, em uma entrevista ao Datena na
Band, afirmou que só aceitaria o resultado que o desse a vitória [ALESSI;
MARREIRO,2018]. Ainda durante a disputa das eleições, o Tribunal Superior
Eleitoral [TSE] determinou a exclusão de um vídeo compartilhado nas redes
sociais no qual Bolsonaro criticava às urnas eletrônicas [TSE,2018]. Mais
recentemente, apesar de eleito no segundo turno com 55% dos votos válidos, e
com mais de um ano de mandato, Bolsonaro afirmou possuir provas de que houve
fraude eleitoral que o impediu de vencer no primeiro turno [AVERBUCK,2020].
Como se pode notar,
essa representação exclusivista acerca do povo não se assenta em bases
empíricas, mas sim em uma ordem moral, simbólica e sentimental [MÜLLER, 2016].
Daí a necessidade, dissertada acima, de elencar inimigos a serem vencidos. Já
que essa representação é, por excelência, sempre falha, quem não participa
dessa comunidade de “escolhidos” só pode ser visto como inimigo. Bolsonaro, por
exemplo, para fazer crer que luta contra os poderosos de uma elite política,
não consegue governar sem eleger inimigos. Dos supostos comunistas à antigos
aliados todos conspiram, segundo Bolsonaro, contra o seu mandato
[VASCONCELOS,2019]. Em verdade, Bolsonaro foi eleito como uma consequência
direta ao ódio contra o Partido dos Trabalhadores e a esquerda de uma forma
geral. A visão contra o pluralismo, por sua vez, está relacionada, segundo
nossa perspectiva, a outra característica da lógica populista: a oposição aos
intelectuais e uma narrativa contra os especialistas. Tal aspecto nos remete à
discussão acerca dos negacionismos da história e a chamada era da pós-verdade.
A
pós-verdade e o negacionismo histórico
Há a mobilização de um
revisionismo histórico, com fins políticos, em curso no Brasil ao menos desde
2011. Na ocasião, ainda no Governo de Dilma Roussef, foram promovidas políticas
públicas de memória da Ditadura Civil-Militar como a Comissão Nacional da
Verdade [BAUER, 2019]. Já na época, como forma de oposição aos trabalhos da
Comissão da Verdade, já circulava nas redes sociais, assim como no discurso de
alguns parlamentares, dentre os quais Bolsonaro, visões negacionistas acerca da
Ditadura. Em 2013 diante da onda de manifestações, caracterizada por uma
intensa insatisfação com o modelo político vigente, apareceu pela primeira vez
na sociedade civil, ao menos de forma declarada, o apoio das Forças Armadas no
poder [BAUER, 2019]. É nesta conjuntura que os discursos negacionistas acerca
da história, como os que afirmam que não houve golpe em 1964 ou que o Nazismo
foi um movimento de esquerda, encontraram nas redes sociais, especialmente a
partir de 2015 no segundo mandato de Dilma Rousseff, grande adesão e
circulação. Essas páginas e perfis nas
redes sociais, em sua maioria, já desde 2015, clamavam Jair Bolsonaro como
futuro Presidente da República.
Para compreendermos um
pouco melhor os processos políticos que desencadeiam, atualmente, o
enfraquecimento da democracia liberal e fortalecem líderes populistas, como
Bolsonaro, os quais mobilizam discursos negacionistas acerca da história,
cumpre dissertamos, por ora, sobre a ideia da pós-verdade. No ano de 2016, a
Oxford Dictionaries, departamento da Universidade de Oxford, elegeu o termo
“Pós-verdade” como a palavra do ano [G1, 2016]. O vocábulo é definido como uma
condição política marcada pelo apelo às emoções e crenças em detrimento de
argumentos racionais [OXFORD DICTIONARIES, 2016]. O prefixo “pós” não indica,
todavia, que estamos para “além” da verdade, mas sim que a distinção entre
verdade e mentira já não é mais tão importante [KALPOKAS,2019]. Isto é, os
critérios através dos quais os fatos são interpretados se modificaram.
Consequentemente,
segundo o pesquisador Jayson Harsin é fundamental repensarmos o conceito de
“regimes de verdade” de Foucault para a sociedade do século XXI [HARSIN,2015].
Para isso Jayson Harsin [2015] propõe o conceito de “regimes de Pós-verdade”, o
qual é caracterizado, a rigor, pela proliferação de “mercados de verdade”. Para
Foucault, grosso modo, as noções de verdade possuem uma historicidade, ao passo
que cada sociedade possui seu regime de verdade. Este regime de verdade é
transmitido hegemonicamente pelos sistemas de poder [FOUCAULT, 2014]. Neste
sentido, o regime foucaultiano de verdade é, em última análise, transmitido e
produzido por uma elite dominante. Em contrapartida, no conceito de “regime de
pós-verdade” esposado por Harsin, o discurso que produz saberes está disperso
socialmente. Há, assim, uma pluralidade de “mercados de verdade” concorrentes
produzidos por atores sociais multifacetados [HARSIN, 2015]. Essa modificação
na lógica da verdade, a rigor, está intrinsecamente relacionada às mudanças na
dinâmica do poder e da autoridade no capitalismo contemporâneo, notadamente em
sua evolução neoliberal [COSENTINO, 2020].
Como nos elucidou o
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, a técnica de poder do regime neoliberal é
mais sutil, permissivo e flexível em relação às sociedades disciplinares
estudadas por Foucault [HAN, 2014]. Com outras palavras, o poder, nas
sociedades neoliberais, é produto de uma exploração da liberdade. O sujeito
neoliberal é interpretado como empresário de si mesmo, o qual se pretende
livre, acredita ser livre, mas, na verdade, é coagido por diferentes vias [HAN,
2014]. Desta sorte, o capitalismo neoliberal transforma a exploração em
autoexploração. Neste sentido, as necessidades do capital são sentidas como
desejo das pessoas [HAN, 2014]. Segundo esta perspectiva, o poder não pode ser
lido apenas na dimensão negativa, como censura, opressão, violência, exclusão e
dissimulação. Há, algo que Foucault já apontava, uma produtividade do poder que
penetra nos corpos e produz desejos, saberes e discursos [HAN, 2019]. O que
Foucault não dissertou, contudo, é que o poder na sociedade neoliberal desperta
o desejo a partir de atos voluntários mobilizados pelo próprio sujeito [HAN,
2019] O poder cria continuidade e dispersa sua vontade como desejo dos
indivíduos. Assim, a sociedade disciplinar teorizada por Foucault não é mais,
segundo Byung Chun-Han, a sociedade neoliberal do século XXI [HAN, 2015]. Essa
sociedade, por sua vez, converte o cidadão em consumidores ávidos por maximizar
a utilidade e a satisfação dos seus atos [HAN, 2014].
O “regime de
pós-verdade”, a rigor, é uma faceta dessa lógica do cidadão-consumidor, o qual
busca em um “mercado de verdades” satisfação e prazer [COSENTIN0, 2020]. A era
das redes sociais e das novas mídias de comunicação é formada, justamente, por
consumidores ativos que se envolvem com as informações e as compartilham de
maneira voluntária, buscando, em última instancia, a confirmação de suas
opiniões. Segundo esta perspectiva, a pós-verdade pode ser interpretada como um
processo de maximização coletiva do prazer [KALPOKAS, 2019]. É agradável ter,
para a maioria das pessoas, seus argumentos validados. Decerto, é comum as
pessoas terem mais facilidade em confirmar o que já pensam do que questionarem
suas convicções.
Dentro desse “mercado
de verdades” cuja moeda é uma narrativa filtrada pelos próprios adeptos de um
contexto enunciativo, ainda que seus argumentos sejam questionados e
desmascarados, dificilmente perderão sua força. Segundo o filósofo e
pesquisador Ignas Kalpokas [2019], esse ambiente comunicativo produz “verdades
afetivas” que mobilizam audiências e causam envolvimento emocional. O conteúdo dessas narrativas é carregado de
artifícios para atrair o público e ter sucesso dentro de um mercado competitivo
[CONSENTINO, 2020]. Daí a necessidade de mensagens simples e com caráter
apelativo.
A avaliação de que as
pessoas se atraem por esse tipo de conteúdo por dificuldade de compreensão ou
deficiência de estudos formais erra, sem dúvida, na questão essencial do
problema. O ambiente das redes sociais nos quais as pessoas consomem diversas
mensagens diariamente, desaconselha o raciocínio mais elaborado e,
especialmente, priorizam apelos emocionais momentâneos. Nesse sentido, não se
trata, segundo nossa perspectiva, exclusivamente, de falta de entendimento
sobre um assunto, mas sim de satisfação na confirmação de concepções pretéritas
enraizadas socialmente. Com efeito, há outras considerações que devem ser
investigadas sobre o sucesso das notícias falsas nas redes. Não será apenas a
retomada de um pensamento crítico e conscientização ética no mundo digital que
solucionará essa espinhosa questão.
Aqui, cumpre pensamos
a relação da discussão feita até esta parte deste ensaio com os desafios do
ensino da história. Como dissertamos acima, o regime de pós-verdade se
estrutura, entre outros aspectos, pela capacidade de atingir elementos de ordem
emocional: ressentimentos, frustrações diversas, ansiedades, medos, dentre uma
miríade de sentimentos. Assim, a
compreensão dos mecanismos emocionais subjacentes a produção das notícias
falsas e de toda sorte de comunicação que mobiliza essa cultura da pós-verdade
é importante para pensarmos novas estratégias do ensino da história nas
práticas pedagógicas em nosso cotidiano escolar.
Desafios
contemporâneos do ensino da história
Nossa hipótese é que o
ensino da história, sem excluir outros métodos pedagógicos, deve buscar
promover uma educação pautada na afetividade no processo do ensino-aprendizagem
como forma de reduzir a força das notícias falsas entre os educandos. Cumpre
afirmar que a natureza didático-pedagógica do ensino da história se transformou
em diversos aspectos ao longo das últimas décadas. Diante desse quadro geral de
mudanças sociais, novas questões desafiam o processo educacional e exige aos
educadores a revisão de determinados pressupostos teóricos-metodológicos
[FONSECA, 2009]. Com efeito, no espaço escolar o encontro entre os saberes dos
alunos e dos professores se deparam com novas exigências no ato de
aprendizagem.
Como nos elucida a
autora Ana Maria Monteiro [2007], a educação escolar deve buscar tornar os
saberes assimiláveis e compreensíveis para o educando. Desta sorte, o espaço
escolar é um lugar de encontros e tensões nos quais as relações construídas
produzem significações e sentidos multifacetados [SCHIMIDT; CAINELLI,2010]. A
escola é, por excelência, palco de um espaço plural e de manifestação de
subjetividades e identidades diversas.
Segundo nossa
hipótese, é fundamental o professor estar atento às múltiplas vivências com as
quais convive no cotidiano escolar. Dentro desta perspectiva, cabe ao professor
construir propostas pedagógicas que se atentem as dimensões cognitivas,
sociais, políticas, éticas e afetivas dos educandos. Como nos elucida Fonseca
[2009], apesar da formação do ser humano não ser, a priori, tarefa exclusiva da
escola, diante de novos cenários sociais, é importante uma educação construída
a partir de uma participação mais afetiva do professor em relação ao seu aluno.
Paulo Freire [1996] já nos chamou atenção que não há separação entre a
atividade docente e afetividade, pelo contrário devem caminhar juntas, embora
nunca deva interferir nos cumprimentos do papel do professor.
O ensino da história
adquire, segundo nossa visão, um lugar de fundamental importância na construção
da cidadania e da democracia tão ameaçadas pela lógica populista e a cultura da
pós-verdade, conforme tentamos demonstrar acima. Acreditamos que o caráter
essencialmente formativo do ensino da história permite aos professores
acessarem discussões de grande relevância para a vida social e, por seu turno,
promoverem formas afetivas de aprendizagem. Por exemplo, é o caso da
possibilidade de incentivar a memória afetiva dos alunos para melhor
compreensão de uma determinada discussão historiográfica. Importa citar, à
guisa de exemplo, uma excelente dissertação de mestrado que procurou trabalhar
com a construção da memória afetiva em sala de aula. Trata-se da dissertação
defendida por Nair Sutil [2016] na Universidade Federal de Santa Catarina
denominada “’Museu’ afetivo e ensino de História: práticas de memória na
educação escolar”. A autora mapeou as fontes históricas e narrativas de cada
aluno e seus familiares, assim como as comunidades nos quais viviam, e propôs
aos alunos trazerem para esse “Museu” afetivo os objetos que poderiam ajudar na
construção de narrativas históricas: do próprio aluno, das suas famílias, das
suas comunidades e da história do Brasil. A tarefa proposta no trabalho foi
ensinar história a partir do universo familiar e afetivo dos alunos.
A partir das questões
tecidas acima, acreditamos que uma forma de neutralizarmos em determinados
aspectos, ao menos entre nossos alunos, os efeitos das visões negacionistas da
história e tudo que envolve a cultura da pós-verdade é incentivarmos práticas
de ensino que busquem mobilizar a metodologia ativa no ensino da história,
notadamente a que procure envolver a aprendizagem e o lado emocional do
aluno. Como afirmamos acima, o regime de
pós-verdade produz “verdades afetivas” e, talvez, uma estratégia de negociação
com esse tipo de “mercado de verdade” seja, justamente, pela capacidade do
professor de mobilizar uma prática pedagógica que busque jogar com a questão
afetiva dos aprendentes. Segundo a perspectiva que tentamos apresentar neste
ensaio, a construção de laços afetivos entre o professor e o aluno no espaço
escolar e as estratégias de envolvimento emocional do educando com a temática
estudada, como o incentivo à memória afetiva, podem ser formas profícuas de
prática pedagógica em um cenário de fortalecimento do regime de pós-verdade.
Referências
Diogo Luiz Lima
Augusto é doutorando em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro [PUC-RJ]. Mestre em História Social Pelo
PPGHIS-UFRJ. Bacharel em História pelo Instituto de História da Universidade
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VASCONCELOS, Gabriel.
Bolsonaro diz ter inimigos dentro e fora do Brasil. Valor Econômico.
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https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/10/11/bolsonaro-diz-ter-inimigos-dentro-e-fora-do-brasil.ghtml.
Obrigado pelo texto, Diogo. Muito bom.
ResponderExcluirUm fenômeno notável ocorrido no período eleitoral foi o de jovens de ensino médio manifestando certa empolgação com Bolsonaro e compromisso de dar o primeiro voto de suas vidas a ele. Contraditoriamente, muitos desses mesmos jovens, que estavam em idade de alistamento militar, também manifestavam repulsa à possibilidade de servirem ao Tiro de Guerra de suas cidades e por aí vai...
Uma vez consideradas a fragmentação da formação humana dos currículos e percursos da educação básica, em que medida essa contradição pode ser compreendida como uma manifestação da multifacetada pós-verdade?
Seria um indicativo da crise e da “recessão” do modelo de democracia liberal?
Diante de tantas preocupações práticas que afetam mais diretamente as pessoas, porém, que carecem de fundamentações teórico-interpretativas mais sólidas dos fenômenos contemporâneos, como o ensino de história (e também de filosofia, sociologia e geografia – das Humanas em geral) pode efetivamente contribuir, com uma abordagem metodológica específica, para a superação de tal contradição (e sem cair na tentação de produzir “verdades afetivas”)?
Por fim, em um cenário no qual argumentos não perdem força facilmente mesmo quando são questionados e desmascarados, como fazer com que o tão atacado discurso científico consiga vencer à narrativa que procura desconstruí-lo, ou seja, como fazer com que consiga ser mais atraente e, sobretudo, mais convincente na atual conjuntura?
Elvis Rezende Messias.
Olá Elvis, muito obrigado por suas considerações e pela pergunta.
ExcluirAcredito que talvez não seja uma contradição a falta de interesse no alistamento militar e a empolgação dos jovens com Bolsonaro. É possível, inclusive, pensar que essa aparente contradição traduz, em última instância, elementos da cultura da Pós-verdade, como tentei discorrer no texto. Há uma parte deste ensaio que procuro sublinhar que a proliferação das mensagens falsas se coaduna com uma questão mais ampla de busca da maximização do prazer: "Segundo esta perspectiva, a pós-verdade pode ser interpretada como um processo de maximização coletiva do prazer [KALPOKAS, 2019].". Desta sorte, segundo minha hipótese, o apoio dos jovens a Bolsonaro não se fundamenta no fato dele ser, na condição de ex-militar, um representante dessa classe ou mesmo um defensor da militarização da sociedade, mas sim por dar voz a uma série de preconceitos enraizados socialmente. Acho também, embora teria que se fazer uma pesquisa para investigar, que os Jovens viram em Bolsonaro uma identificação na forma de se comportar. A ideia de Bolsonaro como mito se relacionaria, segundo esta perspectiva, a um comportamento intempestivo, isto é, agir de maneira inoportuna e imprevista. Os mais jovens costumam agir assim. Outra possível explicação seja a atuação de Bolsonaro nas redes sociais assim como de sua militância. Foi no Twitter e no youtube que se propagaram diversas mensagens de apoio a Bolsonaro desde 2015. Essas mensagens, a partir de uma estratégia para atrair visualizações, costumavam ser produzidas com certa jocosidade seja para defender Bolsonaro ou para atacar seus adversários. Logo, isso atraiu muitas pessoas, pois não havia outro político que conseguia se conectar com a linguagem dos jovens de uma maneira tão bem feita como a equipe de comunicação do Bolsonaro. Pode-se também pensar tal adesão pelo claro enfraquecimento da democracia liberal, como procurei apontar no texto. Digamos que esses jovens, assim como outras faixas etárias, procuravam uma espécie de outsider da política para votar, notadamente pela força que o discurso contra a política adquiriu a partir de 2013. Bolsonaro, o que é curioso, pois é um político de carreira, conseguiu construir uma narrativa como um elemento de fora da política.
Quanto a parte final da pergunta, devo dizer que estamos vivendo um momento extremamente complicado. No entanto, a única forma de reduzirmos os efeitos sociais das Fake News é através de uma educação mais significativa para um aluno. A aprendizagem deve conversar com o cotidiano do aluno, levar em consideração seu ser-aí, sua disposição no mundo. Deve, em última instância, ser plástica, criativa, construída a partir da linguagem e vivência do educando. As humanidades têm um papel ímpar nesse processo. Ainda prefiro ser otimista, apesar dos pesares.
Diogo Luiz Lima Augusto
Diogo,
ExcluirSeu texto é excelente e sua resposta aqui foi lúcida e clara.
Parabéns pela perspicácia e pela seriedade em pensar o presente.
Grande abraço, companheiro!
Gratidão.
Elvis Rezende Messias.
Elvis, muito obrigado pelas considerações.
ExcluirDiogo Luiz Lima Augusto
Parabéns pelo texto e pelo desafio de escrever sobre a história imediata. Uma questão que me parece bastante confusa, atualmente é o conceito de populismo, principalmemte na imprensa. O que pensas disso e como defimir hoje esse conceito?
ResponderExcluirMárcia Blanco Cardoso
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ExcluirOlá Marcia, muito obrigado pelas considerações e pela pergunta.
ExcluirDe fato, há um uso confuso por parte da mídia do conceito de populismo. Como todo conceito, por sua vez, deve ser devidamente historicizado.
Não é fácil, contudo, conceituar o termo populismo, e, talvez, isso explica a quantidade de controvérsias acerca do tema. Por exemplo, há alguns historiadores que não concordam com o uso do termo " populismo" para caracterizar o governo Bolsonaro. Evidentemente, segundo os autores que mobilizei no texto, não concordo com essa tese.
Nos Jornais brasileiros, o termo populismo é utilizado de maneira imprecisa e confusa,mas há uma questão que se observa em quase todos eles: o populismo assume uma conotação pejorativa. Alessandro Batistella, em um excelente artigo ( http://projeto.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/viewFile/97/75) afirma que já desde 1950 os jornais pensavam o populismo como algo pejorativo. Estaria subjacente a esses usos do conceito de populismo certa visão equivocada da cultura política do povo, a qual a historiografia já apontou. Não se trata mais de pensar o populismo sem destacar a importância dos atores sociais. De fato, diversos historiadores já sublinharam a necessidade de repensar tal conceito e destacaram que muitas políticas que beneficiaram o povo e que foram vistas como políticas populistas ( feita de cima para baixo) foram, na verdade, frutos de luta social dos setores populares. Logo,tais políticas não foram uma concessão do populista, mas sim fruto de pressões sociais que modificaram aspectos de uma determinada sociedade.
É verdade que o populismo representado por Bolsonaro é de outra natureza em relação, por exemplo, ao populismo de Getúlio Vargas. O certo é pensar tal concepção sempre no plural. Ainda será preciso escrever a história desse populismo do século XXI. O que tentei apresentar no texto, a partir de uma historiografia americana bem recente sobre o tema, é que no século XXI o populismo é produzido a partir da cultura da Pós-verdade e do enfraquecimento da democracia liberal. Acredito que a lógica do populismo hoje deve ser pensada a partir destas questões.
Diogo Luiz Lima Augusto