Fabrício Pinto Monteiro


DIÁLOGOS ENTRE FÍSICA E HISTÓRIA: NOVOS CAMINHOS  INVESTIGATIVOS E NARRATIVOS PARA O HISTORIADOR




Nos currículos escolares de História na Educação Básica, e na BNCC isso se confirma, frequentemente o professor se depara com temas onde as relações entre as pessoas e natureza, pessoas e a tecnologia tendem a ganhar destaque. É comum na narrativa de aula que esse professor destaque os “porquês” destas relações, mas tenha certa dificuldade para responder aos inevitáveis “como?” vindos de estudantes com mais curiosidade.

“Durante as navegações europeias dos séculos XV e XVI”, explicamos, “a orientação pelas estrelas era fundamental para os viajantes...”. “E como eles faziam isso se durante a noite o céu ‘gira’?”, pergunta o aluno mais observador da classe. Ou ainda: “Uma inovação da chamada Segunda Revolução Industrial em relação à Primeira foi o motor à combustão interna, mais eficiente que o motor a vapor...”. “E como ele funcionava? Quanto ele rendia a mais?” - interrompe nosso querido curioso.

Claro que o professor de História não tem necessidade de saber sobre cada dúvida dos estudantes, que exatamente por serem questionamentos vivos e criativos, não obedecem aos limites formais das caixinhas dos campos disciplinares. Porém, raramente nosso “pergunte ao professor de Ciências!” dá origem a um real diálogo entre as áreas do conhecimento na escola e uma construção efetiva de saber junto aos alunos.

Mesmo nas universidades, a contribuição interdisciplinar [onde cada campo mantém sua metodologia própria, mas para debruçarem-se sobre um tema e problemática comuns] [LÜCK, 2013, p.46] entre a História e Ciências Naturais não é frequente. Temos no exterior, algumas instituições de pesquisa fundadas explicitamente sobre esse diálogo entre História e Ciências Naturais, como o Max Planck Institute for the Science of Human History [https://www.shh.mpg.de/en. Acesso em 02/01/2020], com sede na Alemanha e abrigando grupos de investigação sobre genética, arqueologia, linguística e história cultural. Canais de TV por assinatura como National Geographic, History e diversos da Discovery Inc. apresentam vários programas documentais de cunho histórico em que transparece um aspecto interdisciplinar em suas produções. No Brasil, entre as áreas do conhecimento histórico é a Arqueologia o campo que mantém uma interação interdisciplinar mais forte com a Biologia, Química, Geologia e Física, além da Antropologia [ARAUJO, 2018, p. 300].

Aprender a dialogar, refletir sobre os caminhos de interação disciplinar, é necessário porque há particularidades da História e das diferentes Ciências Naturais, tanto em metodologias de pesquisa, paradigmas epistemológicos e linguagens utilizadas por cada uma delas na construção e comunicação do conhecimento. Neste último ponto, a linguagem, seria de grande valor o estudo das possibilidades de interação das narrativas historiográficas sobre os eventos do passado e os usos da matemática enquanto linguagem central do pensamento científico [FEIO, 2009].

Nesse texto, apresento uma proposta de pesquisa, ainda em estágio inicial, para refletir sobre  potencialidades e prováveis dificuldades de diálogo entre História e Física – enquanto representante das mencionadas Ciências Naturais. A intenção é realizar uma investigação epistemológica sobre essa interdisciplinaridade através de um caso concreto de pesquisa historiográfica, em que características da documentação disponível colocam limites na reconstrução narrativa do passado. Talvez, essa é minha hipótese, a Física permita abrir diferentes caminhos de compreensão e formas de narrar a história.

Apresentando a História: transformações técnicas do boxe inglês
Em pesquisa anterior [MONTEIRO, 2017], tentei investigar como, em termos metodológicos e narrativos, o historiador poderia lidar com as transformações técnicas das artes marciais e outras modalidades de luta. Fazer uma história apenas das relações sociais ou culturais relativas às práticas de luta é algo mais próximo do métier usual do historiador, mas como trabalhar com as mudanças técnicas, com os modos efetivos de lutar dos praticantes, e relacioná-las àqueles aspectos sociais?

Decidi começar com uma prática de luta em um período a mim familiar, os séculos XIX e XVIII, e tecnicamente bem documentada em descrições jornalísticas dos combates, manuais de autoaprendizagem e textos de discussão moral sobre aquele tipo de contenda: o boxe inglês. Descobri como mudanças como o uso gradativo de luvas; a retirada dos chutes do rol de manobras aceitáveis, mas com a manutenção prolongada do uso de arremessos; a preferência por determinadas posturas de guarda mais eretas; o inicial desprezo pelas esquivas; a condenação de golpes circulares como sinônimo do “barbarismo”; a luta visando o nocaute e não o esgotamento físico do adversário… tudo relacionava-se intimamente a valores morais de cavalheirismo, ideias de cientificismo e interesses econômicos para potenciais apoiadores das classes nobres.

Entretanto, apesar das descrições técnicas detalhadas e algumas ilustrações [fotografias surgiriam em períodos mais adiantados dos 1800], os primeiros registros em vídeo do boxe só viriam na década de 1890 [alguns disponíveis no arquivo da Biblioteca do Congresso dos EUA: www.loc.gov]. Para épocas anteriores, falta-nos acesso a como esses lutadores aplicavam realmente seus golpes; os modos de socar, derrubar, defender, esquivar; seu tempo de reação, mobilidade, potência e estabilidade. Características de movimentação real que levavam os sujeitos produtores de nossas fontes a afirmar que tal ou qual luta foi agradável de assistir; que certo lutador era elegante ou científico em seu modo de enfrentar o oponente; que determinadas técnicas não eram eficientes ou moralmente adequadas e deveriam ser abandonadas [MONTEIRO, 2017, p. 187; 199; passim].

A atual pesquisa versa sobre uma série de três lutas [as mais documentadas] envolvendo dois boxeadores de grande celebridade na Inglaterra da segunda metade do século XVIII: Richard Humphries, o “Boxeador Cavalheiro” [the Gentleman Boxer] e o campeão inglês entre 1790-92, Daniel Mendoza, o “Judeu Lutador” [the Fighting Jew]. Elas ocorreram entre 1788 e 1790, com resultado favorável de dois a um para Mendoza. Para além dos resultados, contudo, interessa uma característica que chamou muito a atenção dos contemporâneos dos combates: as diferenças marcantes nos estilos de luta dos dois. Vejamos uma descrição jornalística de Pierce Egan sobre a primeira luta, iniciando pelo derrotado [mas elogiado] Daniel Mendoza:

“… e na luta colada, e como golpeador rápido, ele foi evidentemente superior a seu antagonista. A vantagem esteve também ao lado de Mendoza no quesito força do braço e, ao lutar para conseguir o arremesso, ele castigou consideravelmente seu adversário mantendo sua cabeça para baixo. Sua guarda era excelente e exibiu um completo conhecimento da arte ao mantê-la mais próxima do corpo que seu adversário [...]. Em respeito aos bloqueios, não era pior que Humphries, mas na elegância de postura, calma e julgamento rápido, fortaleza dos modos e força do golpe, ele era essencialmente inferior.” [EGAN, 1830, p. 108]

O auxílio da Física
Nesse momento, um adendo é necessário: as conclusões chegadas pelas análises biomecânicas  discutidas a seguir não possuem valor científico completo. Apesar dos conceitos, relações físicas e modelagem matemática serem usados com estrito rigor, a quantidade de dados analisados não permitiria a construção de um espectro estatístico mínimo para afirmações mais generalizadas sobre as velocidades, acelerações ou estabilidades das posturas. Como mencionado, a pesquisa está em estágio inicial e o objetivo do presente texto é a discussão da pertinência do diálogo entre História e Física na ampliação das possibilidades de investigação e narração historiográfica sobre o passado.

Dito isso, refletiremos sobre o auxílio da Física, via Biomecânica, para a problematização de dois elementos técnicos do boxe de Richard Humphries e Daniel Mendoza que chamaram a atenção de seus contemporâneos. O primeiro relaciona-se à diferença entre as posturas de guarda de cada um, que levou a discussões entre jornalistas, pugilistas e fãs do boxe sobre suas vantagens, desvantagens e papel nos resultados dos confrontos. O segundo, decorrente do primeiro, é sobre a habilidade de cada um ao socar, em termos de velocidade e harmonia do movimento.

Para o primeiro ponto, partamos de uma ilustração de artista desconhecido e publicada por Samuel Fores em Londres apenas dois dias após a primeira luta de Humphries [lutador da esquerda] e Mendoza [da direita], ocorrida em 9 de janeiro de 1788.


DESCONHECIDO. The famous battle between Richard Humphreys and Daniel Mendoza. Gravura colorida à mão. 11/01/1788. Coleção da National Portrait Gallery [https://www.npg.org.uk/ ].

Não há dissenso entre esta e outras ilustrações da época sobre a postura de Humphries [inclusive em seu famoso retrato de John Hoppner]. A de Mendoza é, por vezes, retratada sem tanta inclinação de peso na perna da frente, porém está em consonância com a ilustração presente no próprio manual do lutador [Mendoza, 1792, s/p] e a descrição de Thomas Fewtrell [FEWTRELL, 1790, p. 29].

Classificada como “defensiva”, a postura do “Boxeador Cavalheiro” mantinha maior peso na perna de trás, certa inclinação recuada do tronco, braço esquerdo mais avançado, procurando manter a distância do adversário [FEWTRELL, 1790, p. 27-28] [LEMOINE, 1788, p. 86]. Pernas mais abertas, “membros firmemente plantados”, além da “graciosidade” e “ar marcial”, passavam a impressão de uma combinação corporal harmônica e estável [FEWTRELL, 1790, p. 27-28]. Podemos problematizar, entretanto, o fato de neste confronto com Mendoza, ao contrário do que poderíamos supor, que essa configuração postural de Humphries mostrou-se extremamente instável nos choques corporais da luta aproximada, na medida em que, mesmo vencendo a disputa, ele foi lançado ao chão seis vezes por seu adversário [manobra ainda permitida na época] [LEMOINE, 1790, p. 81].

Obviamente, na dinâmica da luta, a postura de guarda do pugilista não é fixa. O jogo do enfrentamento leva a um fluxo de reconfigurações corporais constantes, entretanto, as diferenças geradas pelo ponto de partida do movimento, a postura de guarda a que nos referimos, já é o suficiente para gerar particularidades importantes nos golpes, defesas e forças de reação do lutador.

Elaboremos uma situação hipotética mais simples para começar, em que o boxeador, ainda sem se mover a partir da guarda, recebe uma força direta contra ele, como um choque de frente, um empurrão vigoroso que almejasse desequilibrá-lo. É impossível para a Física analisar tal situação com base nas ilustrações da documentação da época, pois não há proporções confiáveis de corpo nos desenhos. Uma alternativa é a reprodução das posturas, o mais fielmente possível às fontes históricas, por um atleta e seu registro em imagem para a verificação de sua estabilidade ante a força descrita.

Segundo sugestão de Miranda et al. [2016], um caminho eficiente para tal estudo é a localização do centro de massa [CM] do lutador; um ponto de equilíbrio que, analiticamente, se comporta como se toda a massa do corpo estivesse concentrada ali, inclusive para receber forças externas [SOUZA, 2016, p.9]. Posteriormente, verifica-se qual força desestabilizadora [F], aplicada paralela ao chão e sobre esse centro de massa, faria a pessoa girar sobre um ponto-pivô de apoio [no caso, o pé de trás do boxeador] devido ao torque gerado.

A conclusão dos autores é que a estabilidade de uma postura nessa situação depende de três fatores principais: a massa total da pessoa [m], a altura [h] que o centro de massa está do chão e a distância [d] entre os pé de apoio e a projeção do CM no eixo do solo [MIRANDA et al., 2016, p. 4]. A  aceleração da gravidade [g] faz seu papel na composição do peso do corpo.



A fotografia da esquerda reproduz a postura de Humphries, da direita, Daniel Mendoza

Todas essas conclusões sintetizam-se na equação F=m.g.d/h [Força é igual à Massa multiplicada pela Gravidade, multiplicada pela Distância, dividido pela Altura]. Como a Física, através dessa formalização pela linguagem matemática, pode auxiliar na compreensão das diferenças das posturas de guarda daqueles dois pugilistas do passado? “Lendo” a equação e fotografias, podemos construir a explicação a seguir, que epistemologicamente para a História pode ser utilizada para a elaboração de novas hipóteses de investigação e caminhos narrativos. Podemos tentar “reconstruir” hipoteticamente uma luta que não nos deixou registros em imagem, por exemplo.

Pensemos em uma situação comum para o boxe da época: um dos boxeadores fosse atingido pelo outro, como em um empurrão no tronco com objetivo de derrubá-lo, e vamos acompanhando a “narrativa” da equação apresentada acima. A força [F] que o primeiro teria que aplicar possui uma proporção inversa a altura [h] do centro de massa do segundo lutador em relação ao chão [observe que ‘h’ está em uma posição de ‘divisão’ no lado direito da equação, por isso proporção inversa]. Quer dizer, quanto mais baixa for a postura do lutador, abaixando seu CM, maior é a força necessária para deslocá-lo e maior a tendência dele não perder o equilíbrio. Na reprodução com nosso atleta, numericamente tivemos na postura mais baixa de Richard Humphies, h=61cm, e de Daniel Mendoza h=82cm do solo. É uma aparente oposição ao resultado da luta de 1788, em que o primeiro foi derrubado muito mais vezes, apesar da postura mais próxima ao chão.

Pela equação, também percebemos que maior é a força [F] necessária para desestabilizar um adversário de maior é peso [m.g], e vice-versa. Todas as fontes mencionam Mendoza pesar menos que seus adversários, então, mais uma vez a vantagem estaria ao lado de Humphries. Porém, além do peso, outro fator também obriga a aplicação de uma força maior: a distância [d] entre o ponto de projeção da força [que está no CM] no mesmo eixo [o chão] do pivô de apoio [o pé de trás], marcado com um ponto azul nas fotos. A Física nos permite visualizar o que a imagem apresentada antes não consegue tão claramente: é exatamente esse elemento [a distância do CM do pé de trás] que, de uma maneira um tanto inusitada, torna a postura de Humphries mais frágil a esse tipo de força que de Mendoza.

Para tentar manter a distância dos golpes dos adversários – lembrando que não haviam luvas para serem usadas como “escudo” como no boxe atual -, Richard Humphries tendia a manter o corpo mais apoiado na perna posterior, somando ainda uma inclinação do tronco para trás. Isso posiciona seu centro de massa mais próximo do ponto que deveria absorver a energia do empurrão sofrido, a ponta do pé de trás. Se observarmos nas figuras, Mendoza fazia o oposto. A inclinação para frente, aumentava essa distância, aumentando a estabilidade. Numericamente, no caso do atleta fotografado, temos um d=38,45cm na primeira postura e d=61,87 na do “Judeu Lutador”.

Para efeito de comparação das proporções, considerando nosso atleta [com m=93kg e g=9,8 m/s²], a postura de Humphries suportaria, sem desestabilizar, um empurrão de força máxima 567,75 N, já a de Mendoza, 678,00 N [16,13% mais]. Claro que em uma luta real haveria uma reação imediata do pugilista, mudando sua postura, inclinando o tronco para frente, aplicando força oposta, desviando-se etc. Em síntese para esse tópico: dependendo da problematização do historiador, diferentes situações de uma luta [ou outros casos de movimento, seja humano ou de máquinas, por exemplo] poderiam ser analisadas com auxílio da Física para que, mesmo sem uma documentação específica disponível, que mostrem aqueles movimentos, eles podem ser “reconstruídos” em narrativa pelo historiador. Mais uma vez, resultado numérico das forças consegue comunicar um elemento que apenas as imagens disponíveis ou as narrativas da época não abordam.

O segundo aspecto técnico é o soco desferido a partir das duas posturas. Mendoza era conhecido como um golpeador muito mais rápido que Humphries, que, por sua vez – vemos em vários documentos – socava com elegância, prontidão e força. Para essa parte do estudo, foram levadas em conta as sugestões de PINTO NETO et al. [2006] e o objetivo foi gerar os gráficos correspondentes à velocidade e aceleração de cada soco, reto, com o braço de trás, com intenção de atingir sua extensão máxima e retornar à posição inicial. Foi usada uma câmera com gravação de 60 quadros por segundo para filmar a execução dos golpes; em seguida, registrou-se a posição do punho a cada 3-4 centésimos de segundo. Das relações conseguidas foi feita uma regressão polinomial para a função em relação ao tempo [com R²=0,98]. Desta, foi realizada a derivação primeira e segunda para a obtenção respectivamente das funções da velocidade e aceleração, usadas para a construção dos gráficos. Os dois primeiros a seguir são referentes, respetivamente à velocidade do soco pela postura de Humphries e Mendoza. Terceiro e quarto são da aceleração dos mesmos.



Observemos primeiro as tabelas, à esquerda de cada gráfico. O soco aplicado a partir da postura de Mendoza, concordante à documentação, atingiria seu alvo muito mais rápido que de Humphries: 0,33s contra 0,70s. Embora o pico de velocidade de ambos não tenha sido tão diferente [respectivamente 3,85 m/s e 3,63 m/s]; Mendoza chegaria a esta velocidade antes do adversário [acelerações máximas de 47,72 m/s² e 10,64 m/s²]. A muito maior desaceleração de Mendoza [números negativos ao final da terceira e quarta tabelas] traduz-se na ação mais efetiva de recolher o braço após o impacto, seja para voltar à guarda ou lançar novo soco. Tudo isso é condizente com a postura mais adiantada deste pugilista, quando o CM está já mais próximo do alvo e a rotação ágil da cintura é favorecida.

A linguagem gráfica, parte fundamental da linguagem matemática, é extremamente favorável para nossa compreensão de um evento originalmente visual, o movimento físico dos boxeadores do passado, mas que não deixaram registros fílmicos. Em termos narrativos para a História, os gráficos ganham uma função interessante para nossa visualização da forte sensação de “elegância” e “harmonia” do modo de lutar de Richard Humphries tida na época.

No primeiro gráfico, da velocidade de seu soco, vemos um primeiro e menor pico, com uma queda suave da linha na sequência. É o momento que, após iniciar o soco jogando gradativamente o peso [e o CM] que estava atrás mais na perna da frente, então rotaciona a cintura e o punho dirige-se para a linha central de seu corpo antes de continuar seu avanço. Segue-se uma ascensão limpa da linha e um fim com uma quase horizontalização. Em Mendoza [segundo gráfico], vemos dois picos, com subidas e descidas bruscas.

Essa diferença estética nas linhas é ainda mais acentuada nos gráficos da aceleração [terceiro e quarto], onde em Humphries vemos uma, de fato, elegante parábola [notar a grande simetria entre os pontos dos dois “braços” da parábola]. Em Mendoza a linha é de notável irregularidade, significando um soco mais “chicoteado”, impulsionado pelo giro rápido da cintura, mas difícil para o espectador observar.

Essa relação estética entre gráficos e movimentos reais não é uma “abstração”; um espectador próximo da arena notaria este soco de Humphries como um movimento de grande harmonia entre o aumento e a diminuição de velocidade no trajeto até o alvo, gerando homogeneidade e nitidez no golpe. Perceberia também uma extensão da perna de trás, transferindo o peso desta à da frente, para o avanço do CM e ampliação da força do golpe, em um movimento muito parecido ao da estocada da esgrima, arte nobre que serviu de modelo a “cientifização” do boxe ao longo dos séculos XVIII [e XIX] e sua adaptação ao gosto das classes altas inglesas [MENDOZA, 1792, p. VIII] [FEWTRELL, 1790, p. 34].

Para o historiador, os aspectos técnicos continuam indissociáveis dos sociais: mesmo que nos dois quesitos avaliados, pode-se ter a impressão que a Física [via linguagem matemática] apontou uma maior eficiência da guarda e soco de Mendoza, há de se considerar o quanto manter a “elegância” e “harmonia” como característica de pugilista não foi uma grande vantagem para Humphries. Mesmo nunca sendo campeão inglês, após aposentar-se ele manteve sua boa fama de “cavalheiro” por sua forma de lutar, o que certamente facilitou-lhe tornar-se um respeitável comerciante de carvão em Londres [THE SPORSTMAN, 1845, p. 112]. A noção de “eficiência” em uma luta, portanto, não deve se ater isoladamente às informações técnicas ou numéricas como velocidade, potência do golpe ou número de vitórias, mas às relações sociais em que tais técnicas são desenvolvidas. Para Richard Humphries, de alguma maneira, manter uma técnica “elegante” [conforme visualizamos nos gráficos de seu soco e em sua postura] aos seus contemporâneos mostrou-se extremamente favorável após sua aposentadoria dos ringues.

Para finalizar, reitero o caráter inicial desta pesquisa, mas espero ter conseguido apresentar a hipótese do potencial do diálogo entre os campos da História e Física. Potencial investigativo, em especial para reconstruirmos eventos que nossa documentação tradicional [escrita e imagética, sobretudo] é limitada para nos fornecer informações sobre o passado; novamente, a Arqueologia em quaisquer de suas pesquisas nos exemplifica a união de História e Ciências Naturais, desde construções de cidades, máquinas e tecnologias utilizadas, hábitos de alimentação, formas de lutar, dançar etc. Também potencial narrativo, em que – devidamente adaptados aos leitores potenciais –  gráficos, equações, tabelas e proporções numéricas podem permitir a visualização de relações e detalhes de eventos [como os exemplificados acima] para os quais a descrição por palavras é mais limitada.

Referências
Fabrício Pinto Monteiro é graduado, mestre e doutor em História [Universidade Federal de Uberlândia], graduando em Física [Universidade de Franca] e professor na Educação Básica na rede municipal de Uberlândia – MG.

EGAN, Pierce. Boxiana; or Sketches of ancient and modern pugilism, from the days of the renowned Broughton and Slack, to the championship of Cribb. London: George Virtue/Ivy Lane, 1830. [vol.1]
FEIO, Evandro. Matemática e linguagem: um enfoque na conversão da língua natural para a linguagem matemática. Belém: Universidade Federal do Pará, 2009. 101p [Dissertação de Mestrado em Educação em Ciências e Matemática].
FEWTRELL, Thomas. Boxing Reviewed; or The Science of Manual Defense, displayed on rational principles. London: Scatcherd and Whitaker/Faulder/Champante and Whitrow, 1790.
LEMOINE, Henry. Modern Manhood, or, The Arte and Practice of English Boxing, including the history of the science of natural defence and memoirs of the most celebrated practitioners of that manly exercice. London: J. Parsons/A. Cleugh/J. Sudbury/H. Lemoine, 1788.
LÜCK, Heloísa. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teóricos-metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2013.
MENDOZA, Daniel. The art of boxing. Dublin: M O’Leary, 1792.
MIRANDA, Pedro; BRINATTI, André; SILVA, Sílvio; GODOY, Mariano. “Estudo do centro de massa e estabilidade de quatro posturas básicas do kung fu Pak Hok” in REVISTA BRASILEIRA DE ENSINO DE FÍSICA, vol. 38, nº 4, 2016, p. 1-10.
MONTEIRO, Fabrício. Transformações técnicas das lutas sob uma óptica da História Social: o boxe inglês entre os séculos XVIII e XIX. TEMPORALIDADES, Ed. 24, vol. 9, n. 2, maio/ago 2017, p. 178-203.
PINTO NETO, O.; MAGINI, M.; SABA, M. “Análise cinemática de um movimento de kung fu: a importância de uma apropriada interpretação física para dados obtidos através de câmeras rápidas” REVISTA BRASILEIRA DE ENSINO DE FÍSICA, v. 28, nº 2, 2006, p. 235-239.
SOUZA, Samuel. Mecânica do corpo rígido. Rio de Janeiro: LTC, 2016.
THE SPORTSMAN’S MAGAZINE OF LIFE IN LONDON AND THE COUNTRY. London: Miles’s Boy, 1845.

10 comentários:

  1. Boa noite, primeiro parabéns pelo estudo, que mesmo em fase inicial, achei interessantíssimo. Falando da minha experiência escolar, eu nunca gostei de Física e acredito que muito era devido a não ver sentido naquele conteúdo e como ele poderia influenciar no meu cotidiano. Acredito que o diálogo entre a História e a Física possa ser muito útil para trabalhar em sala de aula e despertar nos alunos o gosto por ambas as matérias. Gostaria de saber se pensas e como pensas em trabalhar essa temática do boxe em sala de aula (em que conteúdo, por quanto tempo e com que ferramentas)? Mais uma vez parabéns pelo estudo!

    Bárbara Birk de Mello

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Bárbara, obrigado pela leitura!
      Na temática específica do boxe ainda não trabalhei em sala de aula, esse é um teste mais metodológico, embora seja possível fazê-lo como um recorte de vários conteúdos. Exemplo: no tema do Iluminismo, pois nessa época da pesquisa e no XIX os esportes populares - como o boxe, o rugby, a luta livre, o futebol etc. - passam por um processo de "apropriação" pelas classes mais altas e são "racionalizados" e "cientificizados", através de estudo anatômico e mecânico para ficarem mais eficientes e também ganham regras para encaixarem-se na ética mais burguesa, menos violenta. No formato da pesquisa, é possível "enxergar" com os alunos essa "racionalização", por exemplo, comparando-se um movimento esportivo técnico, como fazem os atletas profissionais, e o mesmo movimento feito de forma "natural", sem técnica, reproduzidos pelos alunos. Pode-se fazer filmagens simples disso e depois, marcando o tempo e a distância percorrida pelo movimento (seja um soco, um trechinho de corrida, um arremesso de um objeto etc.), encontrar a velocidade média para ver qual foi "mais eficiente", frente a essa racionalidade de resultados que é bem típica do capitalismo e domina o esporte profissional hoje... dá uma discussão interessante.
      Mas isso é uma possibilidade mais próxima dessa pesquisa em si, sobre o boxe e a biomecânica. Outros elementos da física podem ser usados na história de forma interessante: entendimento da termologia para os assuntos dos motores a vapor e elétricos das Revoluções Industriais; a mecânica mais simples para simular os efeitos de ataques de soldados e armas em determinadas guerras; os efeitos da radiação vistos de forma mais detalhada para o momento da Guerra Fria e o temor nuclear, simulando efeitos de explosões hipotéticas... isso para ficar nas temáticas mais "clássicas" da História.
      Mais uma vez, obrigado pela leitura, espero ter te respondido.

      Fabrício Pinto Monteiro

      Excluir
    2. Muito obrigada Fabrício e parabéns pelo estudo!

      Bárbara Birk de Mello

      Excluir
  2. Boa noite! Interessante estudo e ao mesmo tempo é uma leitura curiosa para quem nunca pensou na interdisciplinariedade entre a história e a física. Meu questionamento é o seguinte: quais suas sugestões metodológicas para que esse processo de interdisciplinariedade realmente se concretize dentro da sala de aula?

    Camilla Mariano

    ResponderExcluir
  3. Oi Camilla! Obrigado pela leitura!
    Ano passado trabalhei um projeto com meus 8º anos dentro dessa interdisciplinariedade. Acho que servirá como exemplo das possibilidades. Foi assim: Inventei três personagens fictícios, mas em ambientes históricos "reais". O primeiro deles era um navegador português do século XVI, que faria uma série de viagens comerciais de Portugal à Cabo Verde, ao Brasil, Caribe etc. A tarefa dos alunos era, com alguns mapas celestes que entreguei, mais um mapa mundi e régua, descobrir quais constelações ele deveria seguir para chegar à cada ponto da viagem e calcular (usando a escala do mapa para descobrir a distância real dos trechos) os dias necessários para isso. Calcular o tempo de viagem era necessário, pois devido à translação da Terra, em cada mês o céu está diferente, então eles tinham que olhar o mapa celeste apropriado para cada ocasião. Assim unimos, da física, a astronomia e mecânica (velocidade, tempo, trajetória). O segundo personagem era uma mulher da França do século XVIII que queria matar Luis XVI e ela tentaria se infiltrar no castelo dele para isso. Essa história envolveu cálculos também de mecânica (descubra se ela conseguiu virar o corredor antes do guarda a ver, veja se a pedra que você jogou para chamar a atenção dos seguranças voou longe o bastante etc.). O terceiro era um engenheiro da II Revolução Industria trabalhando na empresa do Thomas Edson (a General Eletrics), no início da produção das linhas de energia para vender as lâmpadas. Os alunos tinham que testar diferentes combinações de lâmpadas pada diferentes voltagens com diferentes resistências para verificar se elas não iam queimar ou se iam ligar. Nessa atividade, além dos cálculos (lembra da tal "Lei de Ohm", V=RI?) eles realmente mexeram no material, com lâmpadas de LED, pilhas, baterias e resistores de eletrônica. Eles gostaram bastante.
    Deu para ter uma ideia? Na História a gente sabe explicar bem "o que" as pessoas fizeram e o "porque" fizeram, mas não exatamente o "como" fizeram, nesses casos envolvendo tecnologia ou natureza. Minha intenção é unir essas coisas.
    O professor de História não precisa saber essas coisas da física, mas dá para montar esse tipo de atividade com ajuda dos professores de Ciências ou Física, se no Ensino Médio.
    Obrigado de novo!

    Fabrício Pinto Monteiro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Parabéns pela criatividade e conhecimento!

      Camilla Mariano

      Excluir
  4. Boa noite!

    Parabéns pelo trabalho, sempre acreditei que eu só conseguia aprender matemática por meio da história. Ao trabalhar com o teorema de Tales,por exemplo, eu só conseguia assimilar, quando partindo de um estudo sobre a história da razão de ser daquele teorema. Acredito que com a física entrelaçada com a História resulte no mesmo efeito.

    Túlio Henrique Pinheiro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado Túlio.
      Também acho. Penso que nós deveríamos tentar mais, nas escolas e nas universidades, romper os limites das "caixinhas" das disciplinas. Afinal, o conhecimento não consegue ser construído de verdade com barreiras sobre o que ou como uma coisa pode ser pensada.

      Fabrício Pinto Monteiro

      Excluir
  5. Olá, Fabrício!
    Fiquei muito curiosa com o título do teu trabalho e positivamente surpresa quando li! Parabéns!
    Sempre gostei muito de História e de Física, mas nunca tinha pensado em conciliar as duas disciplinas. No entanto, como futura professora, me deparo com o desafio da interdisciplinaridade e o desejo de que ela seja de fato efetivada e não só uma atividade criada para enfeitar o plano de aula.
    Como você sugere que seja realizado o trabalho entre os professores das duas disciplinas, e de que forma você acredita que a escola deveria organizar o planejamento dos professores para que a interdisciplinaridade seja realmente efetiva.
    Obrigada!
    Letícia Mayer Borges

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Letícia, obrigado pela sua leitura.
      Acho que o maior desafio mesmo é encontrarmos uma dupla que gosta de inventar e experimentar para fazer junto. Tendo isso, nunca vi uma coordenação ou direção de escola que não se disponha a ajudar na organização dos momentos em que esses professores possam se encontrar e planejar, ou em ajudar a conseguir recursos, espaços etc. para realizar as atividades.

      Pelo que já notei em várias ocasiões diferentes, quando a iniciativa de realizar projetos (ou mesmo dinâmicas menores) interdisciplinares parte da coordenação ou direção, há uma grande chance de encontrar-se professores que, por nem estarem pensando nisso e por terem que mexer no que já planejaram antes sozinhos, acabam participando de forma "burocrática", por obrigação.
      Por outro lado, quando quando aparecem aqueles que querem fazê-lo porque gostam, porque vêem o potencial positivo desse tipo de atividade, e começam o primeiro movimento, acabam despertando aqueles outro professores que já tinham uma faísca de inventividade e gosto por quebrar barreiras, mas que por se sentirem isolados ou acomodados, não haviam tentado antes.
      Com isso, dá para realmente ter-se um trabalho interdisciplinar efetivo, que pode espalhar-se de modo orgânico na escola. Sem receitas e fórmulas prontas, mas com real sentido para quem estiver participando.
      Obrigado de novo pelo comentário!

      Fabrício Pinto Monteiro

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.