Gabrielle Legnaghi de Almeida


DO MÉXICO AO EXTREMO SUL ARGENTINO: O NOVO MUNDO, O SURGIMENTO DA “CIÊNCIA” E SUAS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO




Até o final do século XVI, a figura intelectual mais significativa do pensamento ocidental é representada por Aristóteles [GRANT, 2009, p.52]. Sendo diretamente influenciado pelas ideias platônicas, seus estudos resultaram em um importante legado para a construção do conhecimento, principalmente no campo da biologia e política, sendo considerado como o pai da biologia como disciplina. O estudioso não apenas realizou um pioneiro trabalho na classificação biológica, mas suas descrições de hábitos e comportamentos das espécies influenciaram e foram cruciais para posteriores estudos de zoólogos e naturalistas modernos. [GRANT, 2009, p.53]

No século XVI, com as viagens ultramarinas e a descoberta de novos possíveis domínios, ocorreu na Europa uma ruptura com a antiga tradição medieval de conhecimento que, até então, consistia na interpretação de clássicos textos antigos. Estudiosos como Barrera-Osorio [2006, p.2] compreendem que a revolução da ciência, bem como a ruptura com as tradições, vão além de Nicolau Copérnico e suas ideias heliocêntricas, o autor justifica uma revolução iniciada pelo reino da Espanha, em 1540, quando artistas, estudiosos e oficiais reais partiram para o Novo Mundo.

De acordo com o autor John Henry, em seu livro “A Revolução Científica e as Origens da Ciência Moderna”, publicado em 1998, revolução científica é o nome dado pelos estudiosos da ciência ao período da história, na Europa, em que os fundamentos conceituais, metodológicos e institucionais da ciência na era da modernidade foram determinados pela primeira vez, de maneira incontestável. Para o autor, a pontualidade do período varia de acordo com o historiador, mas, no geral, seu enfoque remete-se ao século XVII, com lapsos de nascimento no século XVI e sua consolidação no século XVIII. [HENRY, 1998, p.13]

As viagens, financiadas pela Espanha, traduzem a ambição da coroa espanhola em dominar e explorar riquezas, porém, paralelamente aos propósitos econômicos, os inúmeros diários de viagem, cartas, relatos e demais documentos sobre a natureza americana também contribuíram para o desenvolvimento da “ciência” no século XVI. Os cuidadosos filósofos naturais seiscentistas, clérigos, médicos, aventureiros e demais viajantes, ao aportarem no vasto território, tiveram que aprimorar, e até inventar, novos métodos e técnicas para reunir informações sobre o Novo Mundo. Nesse processo, os antigos textos tradicionais perderam espaço para os novos métodos empíricos de compreensão da natureza [BARRERA-OSORIO, 2006, p.3], cedendo lugar para analise descritiva dos elementos americanos, por meio de escritos e retratos.  

Durante o século XVI, inúmeros especialistas foram enviados para a América, em nome da coroa espanhola, visando a criação de novas tecnologias e ferramentas. A ascensão das técnicas empíricas, além de promover uma nova interação social entre mercadores, artesãos, físicos, cosmógrafos e oficiais reais [BARRERA-OSORIO, 2006, p.18], contribuiu para um melhor entendimento sobre a natureza e todas as suas possibilidades de exploração. Por outro lado, esse entendimento acarretou na necessidade de uma nova ordem de definições, a formulação de uma nova lógica sobre as coisas naturais, já que a era dos descobrimentos acabara por romper a antiga unidade da natureza, embaralhando e reencaixando novos e velhos elementos [GERBI, 1978, p.19].

A reunião de conhecimentos sobre alimentação, medicina, relevo, clima, vegetação, navegação, flora, fauna, etc., permitiram que a natureza, até então desconhecida, fosse revelada para o europeu.  A partir do domínio de um mínimo conhecimento e experiência sobre o meio, o ambiente pode ser adaptado aos anseios dos viajantes. Para além dos interesses da coroa, os homens que aportaram na América transportavam consigo as suas próprias necessidades e vontades, projetando-as no ambiente que o cercava [LENOBLE, 1990, p. 39], assim como a necessidade de sobrevivência. 

A disseminação de escritos e artigos naturais provenientes do Novo Mundo conduziu a mudanças significativas no cenário filosófico científico europeu e na vida cotidiana. O conhecimento de novas espécies botânicas e zoológicas, além de inovar na farmacopeia e modificar o tratamento de enfermidades, influenciou em diversos outros aspectos, tais como: alimentação, materiais têxtis, perfumes, corantes, gomas, resinas, etc. [PIÑERO, 2007, p. 101].

Junto com as primeiras descrições do território que, atualmente, compreende a América nasceram as teses de “debilidade da América”. O historiador Antonello Gerbi [1978, p.15] expõe a ideia amplamente disseminada, durante a era moderna, de que o continente americano apresentaria traços de inferioridade e imaturidade em relação ao mundo antigo, e ainda, que a vida animal sofre um desenvolvimento contido. Nas inúmeras descrições referente ao Novo Mundo, pode-se perceber as considerações sobre uma natureza débil. Porém, ao mesmo tempo, é possível estabelecer a dualidade entre o fascínio diante das belezas americanas e a suposta superioridade europeia.

O famoso navegador italiano Cristóvão Colombo, ao aportar nas Antilhas em 12 de outubro de 1492, é surpreendido pela vasta fauna e flora, dando o ponta pé inicial para o processo de reconhecimento, exploração e colonização do território americano. Em seu Diário é possível identificar a expressão de três sentimentos do autor: o entusiasmo pela descoberta, a admiração pela sua beleza, e a angustia por não poder apreciar as virtudes da terra, seja pelo tempo de viajem ou pela falta de conhecimento sobre a natureza [GERBI, 1978, p.29]. Esse último, pode ser compreendido pelas diferentes motivações e interesses envolvendo a ocupação dos viajantes que se aventuravam além-mar.
Dentre os naturalistas que vieram para as américas, o capitão espanhol Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdez [1478 – 1557] é um dos autores que merecem destaque. Primeiramente por ter sido um dos primeiros a relatar o processo de colonização na região do Caribe. E em segundo pelas suas contribuições, que consistem em detalhadas descrições sobre os aspectos da flora, destacando as ervas, plantas cultiváveis e comestíveis, árvores, e entre outras; a  fauna, incluindo os animais terrestres, aquáticos, aves e insetos; o relevo dos ambientes em que se encontrava; cotidiano das expedições; as características dos nativos americanos, bem como seus aspectos culturais e sociais, entre outros assuntos.

No decorrer de suas viagens, principalmente na região que hoje compreende América Central e sul do México, Oviedo teceu numerosas descrições, das quais destaco sua obra “Historia General y Natural de las Indias, Islas de Tierra-Firme del Mar Océano” publicada pela primeira vez em 1851, dividida em quatro volumes. O espanhol também contribuiu em áreas como a cosmografia e a náutica, tendo seus textos rapidamente traduzidos para outras línguas europeias [GERBI, 1978], permitindo que o homem seiscentista mergulhasse e figurasse os elementos naturais americanos.

Saindo das Antilhas e migrando para a região que hoje compreende o Peru, destaco a narrativa e as contribuições do padre espanhol Bernabe Cobo [1582 – 1657], autor de duas obras, sendo uma incompleta, referente a América. A “Historia Del Nuevo Mundo”, finalizada em 1653, foi dividida em três volumes: no Tomo I [1890] o missionário aborda, principalmente, a Terra e seus elementos; no Tomo II [1891], destaca as árvores, ervas, flores, os alimentos da região, os animais [aquáticos, terrestres, aves, domesticáveis e os que servem de alimento]; já no Tomo III [1892], o jesuíta volta seu olhar aos costumes incaicos, e seus aspectos culturais, sociais e religiosos. Dentre suas inúmeras descrições sobre diversos aspectos que observou, sua análise sobre a planta Cinchona foi de extrema importância para o posterior desenvolvimento de medicamentos contra malária e febre, onde constatou-se que a casca da planta é rica em quinina, servindo de um excelente medicamento para tais males. E ainda, foi o responsável por apresentar um exemplar da planta para a Europa. Assim, Cobo contribui e compõe o acervo de obras detalhadas referente a região andina e sua composição, ao lado de outros viajantes, como o espanhol Joseph de Acosta [1540 – 1600].

Acosta foi um estudioso jesuíta espanhol. Aventurou-se nas terras peruanas em 1571, trazendo consigo um vasto conhecimento sobre teologia, filosofia e as ciências naturais, possuindo um aguçado sentido para a observação e registros. Suas habilidades e sensibilidade de descrição teceram sua famosa obra: “Historia Natural y Moral de las Indias” [1587], dividida em sete partes. No decorrer da obra seu olhar atento se volta para as características climáticas, para a flora, fauna, sua peregrinação, costumes das principais sociedades nativas que entrou em contato e dentre outros aspectos do ambiente e contextos que presenciou. [ARROM, 1978, p.370]

O processo de fixação espanhola no Novo Mundo não ocorreu de forma fácil ou livre de empecilhos. O continente americano, densamente povoado, tinha seus habitantes concentrados, em sua maior parte, na região da Mesoaméria e nos Andes centrais, onde as sociedades viviam em sua plena organização social, econômica, política, cultural e econômica. A distribuição dessas sociedades afetou e determinou o processo de colonização, e ainda, o ambiente também se mostrou um elemento crucial. Mesmo que a natureza americana tenha se mostrado exuberante, diversificada e magnifica aos curiosos olhos dos europeus, a falta de conhecimento da região, noções de sobrevivência em um território desconhecido, e a falta de recursos dificultaram e retardaram a anexação nas novas terras. Para exemplificar estes problemas, faço uso dos descritos do jesuíta peruano Antonio Ruiz de Montoya [1585 – 1652], natural de Lima, viveu de 1612 a 1637 na redução jesuítica da antiga província de Guairá, região que atualmente compreende o Rio da Prata. [RODRIGUES, 1997, p. 401]

Em sua narrativa intitulada “Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de Jesus, en las Provincias del Paraguay, Parana, Vruguay y Tape [1639]”, o peruano registra a atividade jesuítica espanhola, a interação com os nativos e o processo de conquista, sendo de extrema importância para compreender a dinâmica da região sul da América. No decorrer da leitura dos capítulos é evidente que a formação das províncias não dependeu somente das habilidades administrativas europeias. As doenças, falta de alimento, animais peçonhentos, predadores e resistência indígena também entram nos fatores que dificultaram o estabelecimento espanhol, neste caso, na região da Prata.

Para além da vasta bibliografia destinada aos aspectos ambientais do Novo Mundo e seu grande potencial econômico e mercadológico para o Velho Mundo no século XVI, o europeu desenvolveu um fascínio em relação as terras tropicais. Viagens fantasiosas, lendas urbanas e rumores diversos sobre a América e seus habitantes tomou conta do imaginário europeu, onde os documentos produzidos sobre a natureza foi de extrema importância na figuração das terras americanas na imaginação europeia.

Ainda sobre Ruiz de Montoya, além de suas descrições que contribuíram para o conhecimento sobre o cotidiano na província, o jesuíta dedicou-se ao estudo da língua Guarani, escrevendo três obras: “Vocabilario de la lengua Guaraní” [1640] e a gramática intitulada “Arte de la lengua Guarani” [1640], obras que compõem um conjunto com o dicionário guarani-castelhano, intitulado “Tesoro de la lengua Guaraní” [1639], escritos no período entre 1612 e 1638, enquanto o padre atuava como missionário jesuíta entre os nativos guaranis da região do Guairá, do Paraguai, do Tape e do Uruguai [NOELLI, 2017, p.256]. Fornecendo, para o leitor, exemplos de situações e contextos nos quais inúmeras palavras são, de fato, utilizadas. Com esses escritos, Montoya está entre os maiores conhecedores e estudiosos da língua indígena, onde diversos especialistas da língua, antropólogos e historiadores valorizam suas produções, e ainda, seus escritos, que totalizam em torno de 1500 laudas, contribuem no estudo de diversos temas, tais como: arqueologia, história, linguística, arqueologia e etnociências. [NOELLI, 2017, p.257].

Conclusão
Inicialmente, compreender o contexto que levou até a chegada dos europeus no Novo Mundo pode ser o ponta pé inicial para o estudo da América, compreendendo a América Espanhola e América Portuguesa. Voltando os olhares ao território dominado pela coroa espanhola, entender os meios que resultaram na chegada espanhola nos trópicos e seus motivos correspondem, para além da perspectiva econômica e mercadológica do período, resultados no desenvolvimento do que posteriormente fora consolidado como ciência.

Desde a América do Norte e Antilhas, passando pela extensa Cordilheira dos Andes e chegando na Bacia do Rio da Prata, os espanhóis buscaram conhecer, registrar, explorar, colonizar, e estender seus domínios pelo continente. As dificuldades relatadas nos diferentes tratados e cartas expõem que a natureza americana não foi totalmente receptiva às investidas europeias, sendo necessário o conhecimento, descrição e análise do território, bem como de seus habitantes nativos.

O resgate aos documentos deixados por médicos, naturalistas, jesuítas, capitães e demais aventureiros evidenciam a importância que as descobertas trouxeram no campo científico, deixando para trás as concepções medievais de mundo, “ciência” e método, iniciando seu processo de ressignificação e remodelamento dos paradigmas da Filosofia Natural no início da Era Moderna, século XVI. Esse resgate aos antigos documentos possibilitam uma abordagem interdisciplinar sobre o estudo da América; compreendem a Filosofia na construção do conhecimento; a História, na análise sobre os desdobramentos das grandes navegações e chegada ao Novo Mundo; proporcionam o estimulo de atividades envolvendo a análise de documentos históricos, e ainda, permitem o desenvolvimento de “Temas Transversais”, como por exemplo, a História Ambiental.

Referências
Gabrielle Legnaghi de Almeida, licenciada em História pela Universidade Estadual de Maringá [2019], membra do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC] [UEM], e mestranda em História na linha de pesquisa “História, Cultura e Narrativa” [UEM].

ARROM, José Juan. Precursores coloniales de la narrativa hispanoamericana: José de Acosta o la ficción como biografía. Revista iberoamericana, v. 44, n. 104, p. 369-383, 1978.
GRANT, Edward. História da filosofia natural: do mundo antigo ao século XIX. Madras, 2009.
GERBI, Antonello et al. La naturaleza de las Indias Nuevas. Fondo de Cultura Económica, 1978.
HENRY, John. A revolução científica. Zahar, 1998.
LENOBLE, Robert. História da idéia de natureza. Lisboa: Edições 70, 1990
NOELLI, Francisco Silva. Tesouro e Catecismos da língua Guarani de Antonio Ruiz de Montoya. Diálogos, v. 21, n. 3, p. 256-258, 2017.
RODRIGUES, Daniele Marcelle Grannier. La obra lingüística de Antonio Ruiz de Montoya. Zimmermann [ed.], 1997.

2 comentários:

  1. Bravo, ótimo texto e proposta temática, meus parabéns. Você deixa bem claro a importância que escritos como relatos de viagens, diários, cartas e outros passaram a ter superando até mesmo as chamadas fontes tradicionais a partir do século XVI e XVII no entendimento do europeu sobre o Novo Mundo. Assim, gostaria de saber se aqueles documentos, de caráter mais empírico e, porque não dizer, até mesmo de cunho pessoal, já eram vistos como fontes no momento de sua escrita/publicação e se sim, como era feita a análise sobre o mesmo naquele momento.
    Obrigaod desde já.
    Guilherme Meneghetti Xavier da Silva

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    1. Olá, obrigada pela sua pergunta! Os relatos de viagens produzidos sobre a natureza americana possuiam, já naquele período, caráter de divulgação e exposição, pois eram a unica maneira de se conhecer a América sem cruzar o oceano. Exemplifico a "História Natural y Moral de las Índias" de Jose de Acosta Martins, publicada pela primeira vez em 1590, em Sevilla.

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