DO MÉXICO AO EXTREMO SUL ARGENTINO: O NOVO MUNDO, O SURGIMENTO DA “CIÊNCIA” E SUAS POSSIBILIDADES DE APLICAÇÃO
Até o final do século
XVI, a figura intelectual mais significativa do pensamento ocidental é
representada por Aristóteles [GRANT, 2009, p.52]. Sendo diretamente
influenciado pelas ideias platônicas, seus estudos resultaram em um importante
legado para a construção do conhecimento, principalmente no campo da biologia e
política, sendo considerado como o pai da biologia como disciplina. O estudioso
não apenas realizou um pioneiro trabalho na classificação biológica, mas suas
descrições de hábitos e comportamentos das espécies influenciaram e foram
cruciais para posteriores estudos de zoólogos e naturalistas modernos. [GRANT,
2009, p.53]
No século XVI, com as
viagens ultramarinas e a descoberta de novos possíveis domínios, ocorreu na
Europa uma ruptura com a antiga tradição medieval de conhecimento que, até
então, consistia na interpretação de clássicos textos antigos. Estudiosos como
Barrera-Osorio [2006, p.2] compreendem que a revolução da ciência, bem como a
ruptura com as tradições, vão além de Nicolau Copérnico e suas ideias
heliocêntricas, o autor justifica uma revolução iniciada pelo reino da Espanha,
em 1540, quando artistas, estudiosos e oficiais reais partiram para o Novo
Mundo.
De acordo com o autor
John Henry, em seu livro “A Revolução Científica e as Origens da Ciência
Moderna”, publicado em 1998, revolução científica é o nome dado pelos
estudiosos da ciência ao período da história, na Europa, em que os fundamentos
conceituais, metodológicos e institucionais da ciência na era da modernidade
foram determinados pela primeira vez, de maneira incontestável. Para o autor, a
pontualidade do período varia de acordo com o historiador, mas, no geral, seu enfoque
remete-se ao século XVII, com lapsos de nascimento no século XVI e sua
consolidação no século XVIII. [HENRY, 1998, p.13]
As viagens,
financiadas pela Espanha, traduzem a ambição da coroa espanhola em dominar e
explorar riquezas, porém, paralelamente aos propósitos econômicos, os inúmeros
diários de viagem, cartas, relatos e demais documentos sobre a natureza
americana também contribuíram para o desenvolvimento da “ciência” no século
XVI. Os cuidadosos filósofos naturais seiscentistas, clérigos, médicos,
aventureiros e demais viajantes, ao aportarem no vasto território, tiveram que
aprimorar, e até inventar, novos métodos e técnicas para reunir informações
sobre o Novo Mundo. Nesse processo, os antigos textos tradicionais perderam
espaço para os novos métodos empíricos de compreensão da natureza
[BARRERA-OSORIO, 2006, p.3], cedendo lugar para analise descritiva dos
elementos americanos, por meio de escritos e retratos.
Durante o século XVI,
inúmeros especialistas foram enviados para a América, em nome da coroa
espanhola, visando a criação de novas tecnologias e ferramentas. A ascensão das
técnicas empíricas, além de promover uma nova interação social entre
mercadores, artesãos, físicos, cosmógrafos e oficiais reais [BARRERA-OSORIO,
2006, p.18], contribuiu para um melhor entendimento sobre a natureza e todas as
suas possibilidades de exploração. Por outro lado, esse entendimento acarretou
na necessidade de uma nova ordem de definições, a formulação de uma nova lógica
sobre as coisas naturais, já que a era dos descobrimentos acabara por romper a
antiga unidade da natureza, embaralhando e reencaixando novos e velhos
elementos [GERBI, 1978, p.19].
A reunião de
conhecimentos sobre alimentação, medicina, relevo, clima, vegetação, navegação,
flora, fauna, etc., permitiram que a natureza, até então desconhecida, fosse
revelada para o europeu. A partir do
domínio de um mínimo conhecimento e experiência sobre o meio, o ambiente pode
ser adaptado aos anseios dos viajantes. Para além dos interesses da coroa, os
homens que aportaram na América transportavam consigo as suas próprias
necessidades e vontades, projetando-as no ambiente que o cercava [LENOBLE,
1990, p. 39], assim como a necessidade de sobrevivência.
A disseminação de
escritos e artigos naturais provenientes do Novo Mundo conduziu a mudanças
significativas no cenário filosófico científico europeu e na vida cotidiana. O
conhecimento de novas espécies botânicas e zoológicas, além de inovar na
farmacopeia e modificar o tratamento de enfermidades, influenciou em diversos
outros aspectos, tais como: alimentação, materiais têxtis, perfumes, corantes,
gomas, resinas, etc. [PIÑERO, 2007, p. 101].
Junto com as primeiras
descrições do território que, atualmente, compreende a América nasceram as
teses de “debilidade da América”. O historiador Antonello Gerbi [1978, p.15]
expõe a ideia amplamente disseminada, durante a era moderna, de que o
continente americano apresentaria traços de inferioridade e imaturidade em
relação ao mundo antigo, e ainda, que a vida animal sofre um desenvolvimento
contido. Nas inúmeras descrições referente ao Novo Mundo, pode-se perceber as
considerações sobre uma natureza débil. Porém, ao mesmo tempo, é possível
estabelecer a dualidade entre o fascínio diante das belezas americanas e a suposta
superioridade europeia.
O famoso navegador
italiano Cristóvão Colombo, ao aportar nas Antilhas em 12 de outubro de 1492, é
surpreendido pela vasta fauna e flora, dando o ponta pé inicial para o processo
de reconhecimento, exploração e colonização do território americano. Em seu
Diário é possível identificar a expressão de três sentimentos do autor: o
entusiasmo pela descoberta, a admiração pela sua beleza, e a angustia por não
poder apreciar as virtudes da terra, seja pelo tempo de viajem ou pela falta de
conhecimento sobre a natureza [GERBI, 1978, p.29]. Esse último, pode ser
compreendido pelas diferentes motivações e interesses envolvendo a ocupação dos
viajantes que se aventuravam além-mar.
Dentre os naturalistas
que vieram para as américas, o capitão espanhol Gonzalo Fernández de Oviedo y
Valdez [1478 – 1557] é um dos autores que merecem destaque. Primeiramente por
ter sido um dos primeiros a relatar o processo de colonização na região do
Caribe. E em segundo pelas suas contribuições, que consistem em detalhadas
descrições sobre os aspectos da flora, destacando as ervas, plantas cultiváveis
e comestíveis, árvores, e entre outras; a
fauna, incluindo os animais terrestres, aquáticos, aves e insetos; o
relevo dos ambientes em que se encontrava; cotidiano das expedições; as
características dos nativos americanos, bem como seus aspectos culturais e
sociais, entre outros assuntos.
No decorrer de suas
viagens, principalmente na região que hoje compreende América Central e sul do
México, Oviedo teceu numerosas descrições, das quais destaco sua obra “Historia
General y Natural de las Indias, Islas de Tierra-Firme del Mar Océano”
publicada pela primeira vez em 1851, dividida em quatro volumes. O espanhol
também contribuiu em áreas como a cosmografia e a náutica, tendo seus textos
rapidamente traduzidos para outras línguas europeias [GERBI, 1978], permitindo
que o homem seiscentista mergulhasse e figurasse os elementos naturais
americanos.
Saindo das Antilhas e
migrando para a região que hoje compreende o Peru, destaco a narrativa e as
contribuições do padre espanhol Bernabe Cobo [1582 – 1657], autor de duas
obras, sendo uma incompleta, referente a América. A “Historia Del Nuevo Mundo”,
finalizada em 1653, foi dividida em três volumes: no Tomo I [1890] o
missionário aborda, principalmente, a Terra e seus elementos; no Tomo II
[1891], destaca as árvores, ervas, flores, os alimentos da região, os animais
[aquáticos, terrestres, aves, domesticáveis e os que servem de alimento]; já no
Tomo III [1892], o jesuíta volta seu olhar aos costumes incaicos, e seus
aspectos culturais, sociais e religiosos. Dentre suas inúmeras descrições sobre
diversos aspectos que observou, sua análise sobre a planta Cinchona foi de
extrema importância para o posterior desenvolvimento de medicamentos contra
malária e febre, onde constatou-se que a casca da planta é rica em quinina,
servindo de um excelente medicamento para tais males. E ainda, foi o
responsável por apresentar um exemplar da planta para a Europa. Assim, Cobo
contribui e compõe o acervo de obras detalhadas referente a região andina e sua
composição, ao lado de outros viajantes, como o espanhol Joseph de Acosta [1540
– 1600].
Acosta foi um
estudioso jesuíta espanhol. Aventurou-se nas terras peruanas em 1571, trazendo
consigo um vasto conhecimento sobre teologia, filosofia e as ciências naturais,
possuindo um aguçado sentido para a observação e registros. Suas habilidades e
sensibilidade de descrição teceram sua famosa obra: “Historia Natural y Moral
de las Indias” [1587], dividida em sete partes. No decorrer da obra seu olhar
atento se volta para as características climáticas, para a flora, fauna, sua
peregrinação, costumes das principais sociedades nativas que entrou em contato
e dentre outros aspectos do ambiente e contextos que presenciou. [ARROM, 1978,
p.370]
O processo de fixação
espanhola no Novo Mundo não ocorreu de forma fácil ou livre de empecilhos. O
continente americano, densamente povoado, tinha seus habitantes concentrados,
em sua maior parte, na região da Mesoaméria e nos Andes centrais, onde as
sociedades viviam em sua plena organização social, econômica, política,
cultural e econômica. A distribuição dessas sociedades afetou e determinou o
processo de colonização, e ainda, o ambiente também se mostrou um elemento
crucial. Mesmo que a natureza americana tenha se mostrado exuberante,
diversificada e magnifica aos curiosos olhos dos europeus, a falta de
conhecimento da região, noções de sobrevivência em um território desconhecido,
e a falta de recursos dificultaram e retardaram a anexação nas novas terras.
Para exemplificar estes problemas, faço uso dos descritos do jesuíta peruano
Antonio Ruiz de Montoya [1585 – 1652], natural de Lima, viveu de 1612 a 1637 na
redução jesuítica da antiga província de Guairá, região que atualmente
compreende o Rio da Prata. [RODRIGUES, 1997, p. 401]
Em sua narrativa
intitulada “Conquista espiritual hecha por los religiosos de la Compañia de
Jesus, en las Provincias del Paraguay, Parana, Vruguay y Tape [1639]”, o
peruano registra a atividade jesuítica espanhola, a interação com os nativos e
o processo de conquista, sendo de extrema importância para compreender a
dinâmica da região sul da América. No decorrer da leitura dos capítulos é
evidente que a formação das províncias não dependeu somente das habilidades
administrativas europeias. As doenças, falta de alimento, animais peçonhentos,
predadores e resistência indígena também entram nos fatores que dificultaram o
estabelecimento espanhol, neste caso, na região da Prata.
Para além da vasta
bibliografia destinada aos aspectos ambientais do Novo Mundo e seu grande
potencial econômico e mercadológico para o Velho Mundo no século XVI, o europeu
desenvolveu um fascínio em relação as terras tropicais. Viagens fantasiosas,
lendas urbanas e rumores diversos sobre a América e seus habitantes tomou conta
do imaginário europeu, onde os documentos produzidos sobre a natureza foi de
extrema importância na figuração das terras americanas na imaginação europeia.
Ainda sobre Ruiz de
Montoya, além de suas descrições que contribuíram para o conhecimento sobre o
cotidiano na província, o jesuíta dedicou-se ao estudo da língua Guarani,
escrevendo três obras: “Vocabilario de la lengua Guaraní” [1640] e a gramática
intitulada “Arte de la lengua Guarani” [1640], obras que compõem um conjunto
com o dicionário guarani-castelhano, intitulado “Tesoro de la lengua Guaraní”
[1639], escritos no período entre 1612 e 1638, enquanto o padre atuava como missionário
jesuíta entre os nativos guaranis da região do Guairá, do Paraguai, do Tape e
do Uruguai [NOELLI, 2017, p.256]. Fornecendo, para o leitor, exemplos de
situações e contextos nos quais inúmeras palavras são, de fato, utilizadas. Com
esses escritos, Montoya está entre os maiores conhecedores e estudiosos da
língua indígena, onde diversos especialistas da língua, antropólogos e
historiadores valorizam suas produções, e ainda, seus escritos, que totalizam
em torno de 1500 laudas, contribuem no estudo de diversos temas, tais como:
arqueologia, história, linguística, arqueologia e etnociências. [NOELLI, 2017,
p.257].
Conclusão
Inicialmente,
compreender o contexto que levou até a chegada dos europeus no Novo Mundo pode
ser o ponta pé inicial para o estudo da América, compreendendo a América
Espanhola e América Portuguesa. Voltando os olhares ao território dominado pela
coroa espanhola, entender os meios que resultaram na chegada espanhola nos
trópicos e seus motivos correspondem, para além da perspectiva econômica e
mercadológica do período, resultados no desenvolvimento do que posteriormente
fora consolidado como ciência.
Desde a América do
Norte e Antilhas, passando pela extensa Cordilheira dos Andes e chegando na
Bacia do Rio da Prata, os espanhóis buscaram conhecer, registrar, explorar,
colonizar, e estender seus domínios pelo continente. As dificuldades relatadas
nos diferentes tratados e cartas expõem que a natureza americana não foi
totalmente receptiva às investidas europeias, sendo necessário o conhecimento,
descrição e análise do território, bem como de seus habitantes nativos.
O resgate aos
documentos deixados por médicos, naturalistas, jesuítas, capitães e demais
aventureiros evidenciam a importância que as descobertas trouxeram no campo científico,
deixando para trás as concepções medievais de mundo, “ciência” e método,
iniciando seu processo de ressignificação e remodelamento dos paradigmas da
Filosofia Natural no início da Era Moderna, século XVI. Esse resgate aos
antigos documentos possibilitam uma abordagem interdisciplinar sobre o estudo
da América; compreendem a Filosofia na construção do conhecimento; a História,
na análise sobre os desdobramentos das grandes navegações e chegada ao Novo
Mundo; proporcionam o estimulo de atividades envolvendo a análise de documentos
históricos, e ainda, permitem o desenvolvimento de “Temas Transversais”, como
por exemplo, a História Ambiental.
Referências
Gabrielle Legnaghi de
Almeida, licenciada em História pela Universidade Estadual de Maringá [2019],
membra do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC] [UEM], e mestranda
em História na linha de pesquisa “História, Cultura e Narrativa” [UEM].
ARROM, José Juan. Precursores coloniales de la narrativa
hispanoamericana: José de Acosta o la ficción como biografía. Revista iberoamericana, v. 44, n.
104, p. 369-383, 1978.
GRANT, Edward.
História da filosofia natural: do mundo antigo ao século XIX. Madras,
2009.
GERBI, Antonello et al. La naturaleza de las Indias Nuevas. Fondo de Cultura Económica, 1978.
HENRY, John. A
revolução científica. Zahar, 1998.
LENOBLE, Robert.
História da idéia de natureza. Lisboa: Edições 70, 1990
NOELLI, Francisco
Silva. Tesouro e Catecismos da língua Guarani de Antonio Ruiz de Montoya.
Diálogos, v. 21, n. 3, p. 256-258, 2017.
RODRIGUES, Daniele
Marcelle Grannier. La obra lingüística de Antonio Ruiz de Montoya. Zimmermann
[ed.], 1997.
Bravo, ótimo texto e proposta temática, meus parabéns. Você deixa bem claro a importância que escritos como relatos de viagens, diários, cartas e outros passaram a ter superando até mesmo as chamadas fontes tradicionais a partir do século XVI e XVII no entendimento do europeu sobre o Novo Mundo. Assim, gostaria de saber se aqueles documentos, de caráter mais empírico e, porque não dizer, até mesmo de cunho pessoal, já eram vistos como fontes no momento de sua escrita/publicação e se sim, como era feita a análise sobre o mesmo naquele momento.
ResponderExcluirObrigaod desde já.
Guilherme Meneghetti Xavier da Silva
Olá, obrigada pela sua pergunta! Os relatos de viagens produzidos sobre a natureza americana possuiam, já naquele período, caráter de divulgação e exposição, pois eram a unica maneira de se conhecer a América sem cruzar o oceano. Exemplifico a "História Natural y Moral de las Índias" de Jose de Acosta Martins, publicada pela primeira vez em 1590, em Sevilla.
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