DOS SABORES AOS SABERES: A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO PARA A APRENDIZAGEM HISTÓRICA DOS DISCENTES
É impossível pensarmos
em História sem falarmos em alimentação, uma vez que a comida exerce um papel
essencial desde os primórdios da existência humana na Terra. Ao longo de toda a
História e nas mais diversas sociedades, ela esteve relacionada às esferas
sociais, culturais, políticas e econômicas que são responsáveis por moldar características
próprias de uma determinada população. Isso significa que a alimentação é uma
das bases da identidade humana, uma vez que a atividade de comer perpassa desde
às necessidades nutricionais e biológicas até aspectos éticos, religiosos,
ambientais ou estéticos. Por isso, é indispensável entendermos o alimento e a
prática de se alimentar enquanto eixos centrais na estruturação identitária dos
diversos povos que habitam, ou que já habitaram, o mundo [ROCHA, 2010, p.1-2].
De acordo com o
historiador brasileiro Fábio Pestana Ramos, compreender os hábitos alimentares
permite que qualquer educando tenha um contato direto com sua realidade, visto
que todos nós “[...] nos alimentamos e levamos à boca mais do que sabores,
fatias generosas da história daquilo que comemos e bebemos diariamente.”
[RAMOS, 2010, p. 99]. Partindo desse pressuposto, nosso objetivo é demonstrar
como o ensino da História da Alimentação em sala de aula permite aos alunos a
identificação e o reconhecimento dos laços que os unem ou os diferenciam dos
seus antepassados e contemporâneos. Além disso, em uma escala maior, a inserção
desta temática também proporciona uma aprendizagem histórica mais dinâmica e
possibilita a visualização de cada indivíduo enquanto agente ativo na História
[ibidem, p. 99-100].
Qual
o lugar da Alimentação na História?
Durante muito tempo, a
História da Alimentação foi ignorada pela historiografia, inclusive pela
brasileira que, só recentemente, começou a investir em uma abordagem maior
sobre o tema. A princípio, tanto a alimentação quanto as práticas culinárias
eram objetos de estudo da Antropologia e não da História. Somente a partir das
obras de Fernand Braudel, maior representante da segunda geração dos Annales, é
que a História da Alimentação conseguiu ganhar espaço dentro da pesquisa
histórica. Inspirado nas obras de Lucien Febvre e com base nos conceitos de
cultura material, Braudel conseguiu, finalmente, abranger esferas importantes
da vida humana, como a alimentação, a habitação e o vestuário, que, até então,
eram deixados de lado pela historiografia [SANTOS, 2005, p.13].
De forma geral,
Braudel preocupava-se em estudar as estruturas da vida cotidiana, utilizando a
concepção de tempo longo e argumentando que as mudanças e/ou permanências que
ocorrem na esfera da alimentação acontecem de forma lenta e quase
imperceptível. Ainda que tenha sido marcada por uma preocupação com o nível
econômico das estruturas, os representantes da segunda geração dos Annales
também buscaram em outras áreas do saber, como na Geografia e na Demografia, os
instrumentos para a análise da sociedade. Isso possibilitou que métodos
quantitativos fossem usados no exame serial das fontes, inclusive nos trabalhos
relacionados à alimentação. Enquanto Fernand Braudel esteve no comando da revista,
houve uma tendência em estudar a alimentação a partir da tríade: consumo,
distribuição e produção, pois os estudos, geralmente, abordavam a produtividade
agrícola, as insuficiências tecnológicas, a fome, o preço e o consumo em termos
de quantidade e calorias. No entanto, a partir da consolidação da terceira
geração, a cultura começou a ganhar mais espaço entre os historiadores,
possibilitando que os estudos históricos acerca da alimentação focassem no ato
de comer e daquele que come [BASSO, 2015, p. 57-58].
Reconhecidos por suas
propostas de renovação metodológica que resultaram no alargamento dos temas de
estudo da historiografia, os integrantes da terceira geração dos Annales
estavam mais atentos às práticas sociais devido às suas aproximações com estudos
da Antropologia, como o estruturalismo e a semiótica. Nesse sentido, as
pesquisas sobre alimentação, comida, costumes à mesa e culinária seguiram o
mesmo caminho: passaram a ser compreendidos a partir de seus aspectos
simbólicos. Dentre os historiadores atraídos por essa vertente, é importante
destacarmos Jacques Revel, Jean-Paul
Aron e
Jean Louis Flandrin, sendo este
último, o principal responsável por
abordar o alimento enquanto significado cultural. Flandrin, ao entender
a alimentação enquanto uma
categoria cultural, deslocou
o foco de
estudos das questões
de abastecimento para
as análises simbólicas
e sociais da alimentação, abordando as escolhas
e o gosto que, por sua vez, carrega consigo não
apenas julgamentos pessoais, mas também um significado social, já que
representa uma cultura e sociedade em determinado espaço e tempo. Assim, além
de seu estudo inédito sobre o gosto, visto que muitos historiadores encaravam
isso com maus olhos porque consideravam elitista falar sobre escolha enquanto a
maior parte da população tinha apenas a alimentação de subsistência, Flandrin
ainda ampliou o conceito de fonte histórica, ao utilizar como principais,
algumas obras que, eram consideradas secundárias, como tratados culinários, livros
de receitas e livros literários, por exemplo [ibidem, p. 58-60].
A respeito da produção
historiográfica brasileira sobre esta temática, o historiador Carlos Roberto
Antunes dos Santos considera que ainda temos um volume muito pobre,
especialmente, quando o comparamos com o mercado editorial dos países europeus
que conta com historiadores filiados ao Instituto Europeu de História da
Alimentação [IEHA] e do qual também participam pesquisadores dos Estados
Unidos, Canadá, México, Brasil, Austrália e Israel. Apesar disso, Santos não
deixa de apontar que o destaque da História da Alimentação em nosso país teve
início a partir da obra de Luís da Câmara Cascudo, intitulada justamente como
“A História da Alimentação no Brasil” e publicada em 1967. A importância desse
livro está na tentativa do sociólogo e folclorista brasileiro em construir as
especificidades regionais e caracterizar a alimentação colonial do Brasil a
partir de seus alimentos nativos, utilizando as fontes históricas e
etnográficas como base para isso [SANTOS, 2005, p. 17-18].
Por
que é importante que a História da Alimentação seja lecionada no ensino básico?
De acordo com a Base
Nacional Comum Curricular [BNCC], nós pensamos a História como um saber
necessário para a formação de crianças e jovens a partir das questões
originárias do tempo presente, ou seja, a dinâmica de ensino-aprendizagem deve
ser impulsionada por um passado que dialoga com o tempo atual, especialmente,
para os alunos do Ensino Fundamental. É importante ressaltar que essa relação
entre passado e presente não acontece de forma automática, mas sim a partir do
conhecimento de referências teóricas responsáveis por dar inteligibilidade aos
objetos históricos em questão. Isso significa que um objeto só passa a ser um
documento quando é apropriado por um narrador que lhe confere sentido e o torna
capaz de expressar a dinâmica das sociedades [LE GOFF, 1996, p. 423-425].
Em resumo, podemos
afirmar que o exercício de “fazer História” é marcado pela constituição de um
sujeito que consegue ampliar a sua percepção para o “Outro”, podendo ser
semelhante ou diferente da dele. Esse processo vai aumentando ainda mais,
passando em direção a outros povos para, finalmente, chegar em um mundo sempre
em movimento e transformação. Assim, as combinações dessas variáveis [o Eu, o
Outro e Nós], inseridas em tempos e espaços específicos, permitem aos
indivíduos produzirem saberes que os tornem aptos para situações de conflitos
ou de conciliação [BRASIL, 2018, p. 397-398].
Nesse sentido, a
História da Alimentação contribui grandemente com o ensino de conhecimentos
específicos da História, uma vez que permite ao aluno exercitar o raciocínio
entre o presente e o passado a partir de algo comum a todas as sociedades: a
comida e o ato de comer. Mais do que isso, ao lecionar sobre esta temática, o
docente permite que seus educandos exercitem a capacidade de compreensão acerca
dos processos de transformação e permanência da História, apontando, por
exemplo, costumes e tradições extintos ou mantidos até hoje na hora das
refeições. Com isso, ao refletir a forma como ele, sua família e seus
conhecidos se alimentam e compartilham desses momentos, o aluno passa a se
reconhecer enquanto agente ativo na História e compreende que faz parte de um
processo maior; consegue reconhecer não apenas a cultura da qual faz parte, mas
também a de outros povos contemporâneos ou antepassados a ele. Dessa forma,
diferente do que alguns possam imaginar, é importante mostrarmos aos alunos
que:
“Comer não é um ato
solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a origem da socialização,
pois, nas formas coletivas de se obter a comida, a espécie humana desenvolveu
utensílios culturais diversos, talvez até mesmo a própria linguagem. O uso do
fogo há pelo menos meio milhão de anos trouxe um novo elemento constituidor da
produção social do alimento. A comensalidade é a prática de comer junto,
partilhando [mesmo que desigualmente] a comida; sua origem é tão antiga quanto
a espécie humana, pois até mesmo espécies animais a praticam. A diferença entre
a comensalidade humana e a dos animais é que atribuímos sentidos aos atos da
partilha e eles se alteram com o tempo.” [CARNEIRO, 2005, p. 71-72].
Como
trabalhar a História da Alimentação em sala de aula?
Assim como todos os
conteúdos ministrados, é indispensável que a História da Alimentação faça
sentido para os discentes. Por isso, uma sugestão interessante é que os
professores partam da História mais próxima e palpável aos alunos. Em um
primeiro momento, o docente pode pedir aos educandos que reflitam acerca da
alimentação de suas famílias, expandindo para uma análise maior sobre a
alimentação do seu Estado e do seu país. Apenas com esse exercício inicial,
será possível ao aluno visualizar como os alimentos e práticas alimentares
variam ou se mantém iguais de uma determinada localidade para a outra,
facilitando um entendimento posterior sobre as mudanças e permanências de
tradições e costumes das mais diversas sociedades ao longo da História. Além
disso, essa análise também contribui para a construção identitária do aluno,
uma vez que auxilia sua percepção enquanto indivíduo pertencente a uma
determinada cultura definida em um tempo e espaço específicos.
A partir dessa
explanação inicial, o docente pode apresentar as cozinhas locais, regionais,
nacionais e internacionais enquanto produtos da miscigenação cultural,
evidenciando como as culinárias revelam vestígios das trocas [ou imposições]
culturais. Assim, ao estudarmos a comida e a alimentação a partir de uma visão
das Ciências Humanas, é possível compreender que a formação do gosto não
ocorre, exclusivamente, devido seu aspecto nutricional ou biológico. Mais do
que isso, o alimento também constitui uma categoria histórica, já que os
padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares possuem
referências na própria dinâmica social [SANTOS, 2005, p. 12]. É importante
ressaltar aqui que não devemos tornar a alimentação objeto de estudo específico
da História, mas, ao contrário, devemos ministrar tais conhecimentos de maneira
mais interdisciplinar possível, refletindo essas questões a partir do diálogo
com outras áreas do saber, como a Geografia, a Sociologia e a Biologia, por
exemplo. Dessa forma, poderemos expandir o conhecimento em sala de aula, a
partir da compreensão de que:
“Os alimentos não são
somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social,
pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e
situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade
da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações
culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste
sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come,
como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na
História” [ibidem, p. 12-13].
Conclusão
A História da
Alimentação nos apresenta um grande leque de possibilidades a ser explorado em
sala de aula. Todos os conteúdos históricos trabalhados possuem em comum
pessoas que, nas mais diferentes épocas e lugares do mundo, tiveram e ainda têm
a necessidade básica de se alimentar e compartilhar suas culturas, costumes e
tradições a partir desses momentos. As cozinhas fazem parte de um processo
histórico que visa articular elementos de uma tradição a fim de criar algo
único: particular, singular e reconhecível. No entanto, não devemos nos
esquecer que a identidade social é um projeto que está relacionado ao coletivo
e, por isso, inclui uma constante reconstrução. Isso significa que as cozinhas
não são imutáveis, mas, ao contrário, estão constantemente em reconstrução. As
Grandes Navegações foram responsáveis por muitas dessas transformações, já que
impulsionaram as “viagens dos alimentos” que, provavelmente, existem desde o começo
da humanidade [ainda que em escala muito menor]. Atualmente, por exemplo, é
impossível pensarmos a cozinha mediterrânea sem tomates ou pimentões, porém
estes são alimentos americanos e não europeus [MACIEL, 2004, p. 27].
Em resumo, a História
da Alimentação ocupa um lugar de grande importância no ensino da História,
visto que consegue abranger os mais diversos aspectos, como as preferências
alimentares, a significação simbólica dos alimentos, as proibições dietéticas e
religiosas, os hábitos culinários, a etiqueta e o comportamento à mesa e, de
uma forma mais ampla, as relações que a alimentação mantém em cada sociedade
com os mitos, a cultura e as estruturas sociais que compõem os processos
históricos. “A cozinha é, portanto, um espelho da sociedade, um microcosmo da
sociedade, é a sua imagem.” [SANTOS, 2005, p. 21].
Referências
Me. Anelisa Mota
Gregoleti é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Nathália Moro é
mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de
Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Dr. Christian Fausto
Moraes dos Santos [orientador] é professor pós-doutor em História das Ciências,
professor da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de História da
Universidade Estadual de Maringá [UEM], bolsista produtividade do CNPq e
orientador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC – UEM].
BASSO, Rafaela. O
lugar da alimentação nos estudos históricos da escola dos Annales. Rev.
História Helikon. Curitiba, v. 2, n. 3, p. 50-63, 1º semestre/ 2015.
BRASIL. Base Nacional
Comum Curricular [BNCC]. Educação é a Base. Brasília: MEC/ CONSED/ UNDIME,
2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>.
Acesso em: 14 abr. 2020.
CARNEIRO, Henrique S.
Comida e sociedade: significados sociais na História da Alimentação. História:
Questões & Debates. Editora UFPR, Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005.
LE GOFF, Jacques.
Memória. In: História e Memória. Campinas, UNICAMP, 1996. p.423-425.
MACIEL, Maria Eunice.
Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 33, p. 25-39,
jan. - jun. 2004.
RAMOS, Fábio Pestana.
Alimentação. In: PINSKY, Carla Bassanezi [Org.]. Novos Temas nas aulas de
História. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-118.
ROCHA, Carla Pires
Vieira da. Comida, Identidade e Comunicação: a comida como eixo estruturador de
identidades e meio de comunicação. BOCC. Biblioteca Online de Ciências da
Comunicação, 2010.
SANTOS, Carlos Roberto
Antunes dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória
gustativa. História: Questões & Debates. Editora UFPR, Curitiba, n. 42, p.
11-31, 2005.
Antes de tudo, gostaria de parabenizar pelo excelente trabalho. Uma vez que se torna indispensável tais abordagens, para ampliar o conhecimento dos milhares de sabores constituído de saberes, que diariamente se concebem em nossa prática alimentar; e para o ensino histórico, através das primeiras aberturas feitas pela historiografia.
ResponderExcluirPor tudo isso, como promover essa rica abordagem em sala de aula, pensando a partir de Metodologias ativas, para que assim, possa se ampliar as possibilidades desse saber cultural, social, no dialogo do presente passado presente na vida do estudante?
ANA PAULA RODRIGUES DA SILVA
Olá, Ana Paula! Agradecemos sua leitura e participação!
ExcluirNós acreditamos que esta abordagem deve ser feita de forma interdisciplinar, relacionando as mais diversas áreas do saber, como História, Geografia, Biologia e Sociologia, por exemplo. Além de contribuir com a compreensão do conteúdo estudado, ao adotarmos essa metodologia de estudo permitimos aos alunos expandirem a visão sobre o que estudam e o lugar que isso ocupa em suas vidas.
Esperamos ter sanado sua dúvida.
Att. Nathália Moro e Anelisa Gregoleti.
Diante dessa riquíssima abordagem, que propostas podem ser pensadas, além das já manifestas no corpo do seu trabalho, partindo das habilidades segundo a BNCC, na contribuição do processo de interdisciplinaridade nos espaços escolares, na construção coletiva desse conhecimento?
ResponderExcluirANA PAULA RODRIGUES DA SILVA
Olá, Ana Paula.
ResponderExcluirComo respondemos no comentário acima, acreditamos no ensino interdisciplinar como metodologia que possa ser adotada. Outra estratégia legal e interessante é a produção de trabalhos/ exposições nas "feiras de ciências".
Att. Nathália Moro e Anelisa Gregoleti.