Nathália Moro e Anelisa Mota Gregoleti


DOS SABORES AOS SABERES: A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO PARA A APRENDIZAGEM HISTÓRICA DOS DISCENTES



É impossível pensarmos em História sem falarmos em alimentação, uma vez que a comida exerce um papel essencial desde os primórdios da existência humana na Terra. Ao longo de toda a História e nas mais diversas sociedades, ela esteve relacionada às esferas sociais, culturais, políticas e econômicas que são responsáveis por moldar características próprias de uma determinada população. Isso significa que a alimentação é uma das bases da identidade humana, uma vez que a atividade de comer perpassa desde às necessidades nutricionais e biológicas até aspectos éticos, religiosos, ambientais ou estéticos. Por isso, é indispensável entendermos o alimento e a prática de se alimentar enquanto eixos centrais na estruturação identitária dos diversos povos que habitam, ou que já habitaram, o mundo [ROCHA, 2010, p.1-2].

De acordo com o historiador brasileiro Fábio Pestana Ramos, compreender os hábitos alimentares permite que qualquer educando tenha um contato direto com sua realidade, visto que todos nós “[...] nos alimentamos e levamos à boca mais do que sabores, fatias generosas da história daquilo que comemos e bebemos diariamente.” [RAMOS, 2010, p. 99]. Partindo desse pressuposto, nosso objetivo é demonstrar como o ensino da História da Alimentação em sala de aula permite aos alunos a identificação e o reconhecimento dos laços que os unem ou os diferenciam dos seus antepassados e contemporâneos. Além disso, em uma escala maior, a inserção desta temática também proporciona uma aprendizagem histórica mais dinâmica e possibilita a visualização de cada indivíduo enquanto agente ativo na História [ibidem, p. 99-100].

Qual o lugar da Alimentação na História?
Durante muito tempo, a História da Alimentação foi ignorada pela historiografia, inclusive pela brasileira que, só recentemente, começou a investir em uma abordagem maior sobre o tema. A princípio, tanto a alimentação quanto as práticas culinárias eram objetos de estudo da Antropologia e não da História. Somente a partir das obras de Fernand Braudel, maior representante da segunda geração dos Annales, é que a História da Alimentação conseguiu ganhar espaço dentro da pesquisa histórica. Inspirado nas obras de Lucien Febvre e com base nos conceitos de cultura material, Braudel conseguiu, finalmente, abranger esferas importantes da vida humana, como a alimentação, a habitação e o vestuário, que, até então, eram deixados de lado pela historiografia [SANTOS, 2005, p.13].

De forma geral, Braudel preocupava-se em estudar as estruturas da vida cotidiana, utilizando a concepção de tempo longo e argumentando que as mudanças e/ou permanências que ocorrem na esfera da alimentação acontecem de forma lenta e quase imperceptível. Ainda que tenha sido marcada por uma preocupação com o nível econômico das estruturas, os representantes da segunda geração dos Annales também buscaram em outras áreas do saber, como na Geografia e na Demografia, os instrumentos para a análise da sociedade. Isso possibilitou que métodos quantitativos fossem usados no exame serial das fontes, inclusive nos trabalhos relacionados à alimentação. Enquanto Fernand Braudel esteve no comando da revista, houve uma tendência em estudar a alimentação a partir da tríade: consumo, distribuição e produção, pois os estudos, geralmente, abordavam a produtividade agrícola, as insuficiências tecnológicas, a fome, o preço e o consumo em termos de quantidade e calorias. No entanto, a partir da consolidação da terceira geração, a cultura começou a ganhar mais espaço entre os historiadores, possibilitando que os estudos históricos acerca da alimentação focassem no ato de comer e daquele que come [BASSO, 2015, p. 57-58].

Reconhecidos por suas propostas de renovação metodológica que resultaram no alargamento dos temas de estudo da historiografia, os integrantes da terceira geração dos Annales estavam mais atentos às práticas sociais devido às suas aproximações com estudos da Antropologia, como o estruturalismo e a semiótica. Nesse sentido, as pesquisas sobre alimentação, comida, costumes à mesa e culinária seguiram o mesmo caminho: passaram a ser compreendidos a partir de seus aspectos simbólicos. Dentre os historiadores atraídos por essa vertente, é importante destacarmos Jacques  Revel, Jean-Paul Aron  e  Jean  Louis Flandrin, sendo este último, o principal responsável por  abordar o  alimento  enquanto significado  cultural. Flandrin, ao  entender  a alimentação  enquanto  uma  categoria cultural, deslocou  o  foco  de  estudos  das  questões  de  abastecimento  para  as  análises  simbólicas  e sociais  da  alimentação, abordando as  escolhas  e  o  gosto que, por sua vez, carrega consigo não apenas julgamentos pessoais, mas também um significado social, já que representa uma cultura e sociedade em determinado espaço e tempo. Assim, além de seu estudo inédito sobre o gosto, visto que muitos historiadores encaravam isso com maus olhos porque consideravam elitista falar sobre escolha enquanto a maior parte da população tinha apenas a alimentação de subsistência, Flandrin ainda ampliou o conceito de fonte histórica, ao utilizar como principais, algumas obras que, eram consideradas secundárias, como tratados culinários, livros de receitas e livros literários, por exemplo [ibidem, p. 58-60].

A respeito da produção historiográfica brasileira sobre esta temática, o historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos considera que ainda temos um volume muito pobre, especialmente, quando o comparamos com o mercado editorial dos países europeus que conta com historiadores filiados ao Instituto Europeu de História da Alimentação [IEHA] e do qual também participam pesquisadores dos Estados Unidos, Canadá, México, Brasil, Austrália e Israel. Apesar disso, Santos não deixa de apontar que o destaque da História da Alimentação em nosso país teve início a partir da obra de Luís da Câmara Cascudo, intitulada justamente como “A História da Alimentação no Brasil” e publicada em 1967. A importância desse livro está na tentativa do sociólogo e folclorista brasileiro em construir as especificidades regionais e caracterizar a alimentação colonial do Brasil a partir de seus alimentos nativos, utilizando as fontes históricas e etnográficas como base para isso [SANTOS, 2005, p. 17-18].

Por que é importante que a História da Alimentação seja lecionada no ensino básico?
De acordo com a Base Nacional Comum Curricular [BNCC], nós pensamos a História como um saber necessário para a formação de crianças e jovens a partir das questões originárias do tempo presente, ou seja, a dinâmica de ensino-aprendizagem deve ser impulsionada por um passado que dialoga com o tempo atual, especialmente, para os alunos do Ensino Fundamental. É importante ressaltar que essa relação entre passado e presente não acontece de forma automática, mas sim a partir do conhecimento de referências teóricas responsáveis por dar inteligibilidade aos objetos históricos em questão. Isso significa que um objeto só passa a ser um documento quando é apropriado por um narrador que lhe confere sentido e o torna capaz de expressar a dinâmica das sociedades [LE GOFF, 1996, p. 423-425].

Em resumo, podemos afirmar que o exercício de “fazer História” é marcado pela constituição de um sujeito que consegue ampliar a sua percepção para o “Outro”, podendo ser semelhante ou diferente da dele. Esse processo vai aumentando ainda mais, passando em direção a outros povos para, finalmente, chegar em um mundo sempre em movimento e transformação. Assim, as combinações dessas variáveis [o Eu, o Outro e Nós], inseridas em tempos e espaços específicos, permitem aos indivíduos produzirem saberes que os tornem aptos para situações de conflitos ou de conciliação [BRASIL, 2018, p. 397-398].

Nesse sentido, a História da Alimentação contribui grandemente com o ensino de conhecimentos específicos da História, uma vez que permite ao aluno exercitar o raciocínio entre o presente e o passado a partir de algo comum a todas as sociedades: a comida e o ato de comer. Mais do que isso, ao lecionar sobre esta temática, o docente permite que seus educandos exercitem a capacidade de compreensão acerca dos processos de transformação e permanência da História, apontando, por exemplo, costumes e tradições extintos ou mantidos até hoje na hora das refeições. Com isso, ao refletir a forma como ele, sua família e seus conhecidos se alimentam e compartilham desses momentos, o aluno passa a se reconhecer enquanto agente ativo na História e compreende que faz parte de um processo maior; consegue reconhecer não apenas a cultura da qual faz parte, mas também a de outros povos contemporâneos ou antepassados a ele. Dessa forma, diferente do que alguns possam imaginar, é importante mostrarmos aos alunos que:

“Comer não é um ato solitário ou autônomo do ser humano, ao contrário, é a origem da socialização, pois, nas formas coletivas de se obter a comida, a espécie humana desenvolveu utensílios culturais diversos, talvez até mesmo a própria linguagem. O uso do fogo há pelo menos meio milhão de anos trouxe um novo elemento constituidor da produção social do alimento. A comensalidade é a prática de comer junto, partilhando [mesmo que desigualmente] a comida; sua origem é tão antiga quanto a espécie humana, pois até mesmo espécies animais a praticam. A diferença entre a comensalidade humana e a dos animais é que atribuímos sentidos aos atos da partilha e eles se alteram com o tempo.” [CARNEIRO, 2005, p. 71-72].

Como trabalhar a História da Alimentação em sala de aula?
Assim como todos os conteúdos ministrados, é indispensável que a História da Alimentação faça sentido para os discentes. Por isso, uma sugestão interessante é que os professores partam da História mais próxima e palpável aos alunos. Em um primeiro momento, o docente pode pedir aos educandos que reflitam acerca da alimentação de suas famílias, expandindo para uma análise maior sobre a alimentação do seu Estado e do seu país. Apenas com esse exercício inicial, será possível ao aluno visualizar como os alimentos e práticas alimentares variam ou se mantém iguais de uma determinada localidade para a outra, facilitando um entendimento posterior sobre as mudanças e permanências de tradições e costumes das mais diversas sociedades ao longo da História. Além disso, essa análise também contribui para a construção identitária do aluno, uma vez que auxilia sua percepção enquanto indivíduo pertencente a uma determinada cultura definida em um tempo e espaço específicos.

A partir dessa explanação inicial, o docente pode apresentar as cozinhas locais, regionais, nacionais e internacionais enquanto produtos da miscigenação cultural, evidenciando como as culinárias revelam vestígios das trocas [ou imposições] culturais. Assim, ao estudarmos a comida e a alimentação a partir de uma visão das Ciências Humanas, é possível compreender que a formação do gosto não ocorre, exclusivamente, devido seu aspecto nutricional ou biológico. Mais do que isso, o alimento também constitui uma categoria histórica, já que os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares possuem referências na própria dinâmica social [SANTOS, 2005, p. 12]. É importante ressaltar aqui que não devemos tornar a alimentação objeto de estudo específico da História, mas, ao contrário, devemos ministrar tais conhecimentos de maneira mais interdisciplinar possível, refletindo essas questões a partir do diálogo com outras áreas do saber, como a Geografia, a Sociologia e a Biologia, por exemplo. Dessa forma, poderemos expandir o conhecimento em sala de aula, a partir da compreensão de que:

“Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro. A historicidade da sensibilidade gastronômica explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época. Neste sentido, o que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come. Enfim, este é o lugar da alimentação na História” [ibidem, p. 12-13].

Conclusão
A História da Alimentação nos apresenta um grande leque de possibilidades a ser explorado em sala de aula. Todos os conteúdos históricos trabalhados possuem em comum pessoas que, nas mais diferentes épocas e lugares do mundo, tiveram e ainda têm a necessidade básica de se alimentar e compartilhar suas culturas, costumes e tradições a partir desses momentos. As cozinhas fazem parte de um processo histórico que visa articular elementos de uma tradição a fim de criar algo único: particular, singular e reconhecível. No entanto, não devemos nos esquecer que a identidade social é um projeto que está relacionado ao coletivo e, por isso, inclui uma constante reconstrução. Isso significa que as cozinhas não são imutáveis, mas, ao contrário, estão constantemente em reconstrução. As Grandes Navegações foram responsáveis por muitas dessas transformações, já que impulsionaram as “viagens dos alimentos” que, provavelmente, existem desde o começo da humanidade [ainda que em escala muito menor]. Atualmente, por exemplo, é impossível pensarmos a cozinha mediterrânea sem tomates ou pimentões, porém estes são alimentos americanos e não europeus [MACIEL, 2004, p. 27].

Em resumo, a História da Alimentação ocupa um lugar de grande importância no ensino da História, visto que consegue abranger os mais diversos aspectos, como as preferências alimentares, a significação simbólica dos alimentos, as proibições dietéticas e religiosas, os hábitos culinários, a etiqueta e o comportamento à mesa e, de uma forma mais ampla, as relações que a alimentação mantém em cada sociedade com os mitos, a cultura e as estruturas sociais que compõem os processos históricos. “A cozinha é, portanto, um espelho da sociedade, um microcosmo da sociedade, é a sua imagem.” [SANTOS, 2005, p. 21].

Referências
Me. Anelisa Mota Gregoleti é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Nathália Moro é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá [UEM] e bolsista CAPES.
Dr. Christian Fausto Moraes dos Santos [orientador] é professor pós-doutor em História das Ciências, professor da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá [UEM], bolsista produtividade do CNPq e orientador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente [LHC – UEM].

BASSO, Rafaela. O lugar da alimentação nos estudos históricos da escola dos Annales. Rev. História Helikon. Curitiba, v. 2, n. 3, p. 50-63, 1º semestre/ 2015.
BRASIL. Base Nacional Comum Curricular [BNCC]. Educação é a Base. Brasília: MEC/ CONSED/ UNDIME, 2018. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2020.
CARNEIRO, Henrique S. Comida e sociedade: significados sociais na História da Alimentação. História: Questões & Debates. Editora UFPR, Curitiba, n. 42, p. 71-80, 2005.
LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e Memória. Campinas, UNICAMP, 1996. p.423-425.
MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº 33, p. 25-39, jan. - jun. 2004.
RAMOS, Fábio Pestana. Alimentação. In: PINSKY, Carla Bassanezi [Org.]. Novos Temas nas aulas de História. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2010. p. 95-118.
ROCHA, Carla Pires Vieira da. Comida, Identidade e Comunicação: a comida como eixo estruturador de identidades e meio de comunicação. BOCC. Biblioteca Online de Ciências da Comunicação, 2010.
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates. Editora UFPR, Curitiba, n. 42, p. 11-31, 2005.

4 comentários:

  1. Antes de tudo, gostaria de parabenizar pelo excelente trabalho. Uma vez que se torna indispensável tais abordagens, para ampliar o conhecimento dos milhares de sabores constituído de saberes, que diariamente se concebem em nossa prática alimentar; e para o ensino histórico, através das primeiras aberturas feitas pela historiografia.
    Por tudo isso, como promover essa rica abordagem em sala de aula, pensando a partir de Metodologias ativas, para que assim, possa se ampliar as possibilidades desse saber cultural, social, no dialogo do presente passado presente na vida do estudante?

    ANA PAULA RODRIGUES DA SILVA

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    1. Olá, Ana Paula! Agradecemos sua leitura e participação!
      Nós acreditamos que esta abordagem deve ser feita de forma interdisciplinar, relacionando as mais diversas áreas do saber, como História, Geografia, Biologia e Sociologia, por exemplo. Além de contribuir com a compreensão do conteúdo estudado, ao adotarmos essa metodologia de estudo permitimos aos alunos expandirem a visão sobre o que estudam e o lugar que isso ocupa em suas vidas.
      Esperamos ter sanado sua dúvida.
      Att. Nathália Moro e Anelisa Gregoleti.

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  2. Diante dessa riquíssima abordagem, que propostas podem ser pensadas, além das já manifestas no corpo do seu trabalho, partindo das habilidades segundo a BNCC, na contribuição do processo de interdisciplinaridade nos espaços escolares, na construção coletiva desse conhecimento?

    ANA PAULA RODRIGUES DA SILVA

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  3. Olá, Ana Paula.
    Como respondemos no comentário acima, acreditamos no ensino interdisciplinar como metodologia que possa ser adotada. Outra estratégia legal e interessante é a produção de trabalhos/ exposições nas "feiras de ciências".
    Att. Nathália Moro e Anelisa Gregoleti.

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