ENSINO DE HISTÓRIA, “TEMAS SENSÍVEIS” E A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO DOCUMENTAL SOBRE A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA: O CASO DO ACERVO “BRASIL NUNCA MAIS”
A apropriação do uso e
ressignificação do passado através da relação entre ensino de História e novas
tecnologias passa pela relação que cada sociedade historicamente tem com seu
passado, suas opções de discurso e reprodução dos meios de manutenção desses
silenciamentos e esquecimentos deliberadamente operacionalizados no ensino de
História. Logo, se faz necessário compreender que as relações entre “escola e
cultura, possibilitaram a melhor compreensão do papel desempenhado pela escola
na produção da memória coletiva, das identidades sociais e da reprodução (ou
transformação) das relações de poder” [MONTEIRO, 2003, p. 9]. Dentro dessa
perspectiva, podemos pensar as relações entre ensino de História e as
abordagens dos chamados “temas sensíveis” em sala de aula, bem como as
complexidades de reflexão sobre um:
“processo histórico
que envolveu grande dose de violência – sobretudo a prisão arbitrária de
pessoas, seguida quase sempre de tortura e, várias vezes, de morte -, a
ditadura militar brasileira pode ser pensada em conjunto com outros eventos
‘traumáticos’ característicos do século XX, o que situa esse tema no contexto
dos debates teóricos sobre história do Tempo Presente” [FICO, 2012, p. 44].
Circe Bittencourt
assevera a importância, para alguns pesquisadores da área de ensino de
História, do domínio conceitual da história do tempo presente, de modo que o
ensino da disciplina possa cumprir uma de suas finalidades: “libertar o aluno
do tempo presente.” Essa aparente contradição tem como pressuposto a ideia de
que o:
“[...] domínio de uma
história do tempo presente fornece conteúdos e métodos de análise do que “está
acontecendo” e as ferramentas intelectuais que possibilitam aos alunos a
compreensão dos fatos cotidianos desprovidos de mitos ou fatalismos
desmobilizadores, além de situar os acontecimentos em um tempo histórico mais
amplo, em uma duração que contribui para a compreensão de uma situação imediata
repleta de emoções. O estudo do contemporâneo – no dizer do historiador Michel
Trebisch, uma das “virtudes pedagógicas” – sempre foi favorecido pelos planos
escolares, embora tenha sido apresentado como apenas uma história factual, e na
maioria das vezes, para cumprir desígnios ideológicos de determinados grupos de
poder governamental” [BITTENCOURT, 2011, p. 151-152].
A ausência de maiores
problematizações nas abordagens do currículo escolar em história, especialmente
no que diz respeito aos “temas sensíveis”, leva a sua naturalização ou, mais
além, ao silenciamento, relegando-os a meros fatos isolados em seleções e
esquemas simplificados (nada fortuitos) nos livros didáticos. Em nome de uma
retórica humanizadora, de um saber colaborativo, crítico, atuante e cidadão, as
definições e parametrizações nos direcionam para a exigência de um ensino de
História que se distancie de estereótipos e simplismos.
No que se refere às
graves violações de direitos humanos ocorridos durante a Ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985), como ficam as abordagens a esses temas sensíveis?
Quando historicizados nos remetem diretamente às questões como cidadania,
justiça social, igualdade, liberdade, direitos historicamente conquistados,
frutos da mobilização e luta de muitos agentes sociais. No entanto, ao serem
tratados como polêmicos ou parcialmente inadequados à faixa etária discente,
são diminuídos em sua importância como processo histórico, eliminando a
reflexão acerca das rupturas e permanências no processo histórico, de usos do
passado e do engendramento de uma “atitude historiadora” acrítica, passiva e
reprodutora das explicações e métodos tradicionais de construção do
conhecimento histórico.
Ensino
de História, temas sensíveis e legislação educacional
Nesta perspectiva,
pensamos o silenciamento ou esquecimento dos chamados temas sensíveis em sala
de aula, apontando para um aprendizado histórico de caráter reducionista e
hegemônico, verificado na naturalização da conquista da anistia (1979) ou
recorrendo a esquemas simplificados de explicação que não abarcam a
multiplicidade de atores sociais e as complexidades envolvidas. Quais projetos
foram derrotados e posteriormente silenciados? Quais meios de difusão e criação
de consenso das explicações minimizaram a importância dos movimentos
contestatórios contra o regime ditatorial brasileiro e seu projeto de anistia
política, por exemplo? Quais “usos do passado” estão implícitos em determinada
narrativa ou concepção de História nos livros didáticos?
Sob o enquadramento da
consciência histórica e sua capacidade de unir passado e futuro, coexiste a
possibilidade de desenvolvimento gradativo de ideias históricas mais sofisticadas
em relação ao conhecimento histórico entre os alunos. Temas como cidadania,
justiça e igualdade social são, em tese, norteadores da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), objetivando o fortalecimento do potencial da escola como
espaço formador e orientador para uma “cidadania consciente, crítica e
participativa” ou mesmo da “garantia do direito dos alunos a aprender e a se
desenvolver, contribuindo para o desenvolvimento pleno da cidadania” [BRASIL,
BNCC, 2017, p.8 e p.59].
Deste modo, a
finalidade básica da educação seria assegurar ao educando uma formação comum,
indispensável para o exercício da cidadania, fornecendo-lhe meios para sua
progressão no mundo do trabalho e estudos posteriores. Em toda legislação
educacional vigente no país é perceptível em suas diretrizes a ênfase dada na
promoção da cidadania e sua estreita relação com seu exercício e
desdobramentos, seja na vida do aluno ou nos valores sociais que regularão sua
vida em sociedade.
As premissas que
nortearão a BNCC em suas três etapas de escolarização, relacionada à cidadania
e à normatização de uma educação que valoriza a diversidade de saberes e
vivências culturais, apropria-se de conhecimentos e experiências que
possibilitam “entender as relações próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas
alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade,
autonomia, consciência crítica e liberdade” [BNCC, 2017, p. 08]. Em uma
perspectiva crítica, tais premissas serão aqui discutidas a partir de uma de
suas competências gerais, a saber:
“Valorizar a
diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de conhecimentos e
experiências que lhe possibilitem entender as relações próprias do mundo do
trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto
de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsabilidade”
[BRASIL, BNCC, 2017, p. 09].
A garantia jurídica de
impunidade dos agentes que atuaram na repressão dos opositores do regime,
promovida pela Lei de Anistia, além do esquecimento desejado pelos legisladores
e pelo governo de João Batipsta Figueiredo (1979-1985), bem como o apelo ao
discurso conciliatório, pacificador, trazendo em seu bojo o assunto como “um
passado que não deveria ser lembrado” e remetendo às feridas e cicatrizes de
outrora, nos permitem refletir sobre as abordagens em sala de aula de tais
temáticas e as opções, seleções, silêncios e memórias subjacentes ao
posicionamento do professor e seu “lugar social” diante dessas abordagens.
Assim, não revisitar esse passado ou o uso que se faz dele ecoa dentro e fora
da sala de aula.
Nesse sentido,
(re)pensar a Lei de Anistia constitui-se como uma demanda do presente, uma vez
que mais de 75 mil pedidos de anistia foram encaminhados ao Ministério da
Justiça e ao Ministério da Defesa. A negação da revisão da Lei de Anistia pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010, definida pela Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, a condenação do Brasil na
Corte Interamericana de Direitos Humanos e a negação da acusação de estupro
(2010) e outras torturas infligidas à Inês Etienne Romeu pelos agentes do
Estado brasileiro, por exemplo, atualizam a necessidade de
problematização/inserção dessas questões no cotidiano escolar. As temáticas em
torno da Lei de Anistia, portanto, são aqui consideradas centrais para a
formação de um “cidadão crítico e atuante”, disposto a compreender a sociedade
em que está inserido e com atuação sobre essa realidade e, portanto,
transformá-la (ou mantê-la), fundamentando suas ações, no que concerne a
educação escolar básica, no desenvolvimento de competências e habilidades para,
como afirma a competência nº 7:
“Argumentar com base
em fatos, dados e informações confiáveis, para formular, negociar e defender
ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e promovam os direitos
humanos e a consciência socioambiental em âmbito local, regional e global, com
posicionamento ético em relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do
planeta” [BRASIL, BNCC, 2017, p. 8].
Como apontar para uma
“formação humana integral” que visa à construção de uma sociedade “justa,
democrática e inclusiva”, pautada em ideais de justiça, igualdade, democracia e
cidadania? Em se tratando de nosso “passado recente”, como estão sendo
abordados os “temas sensíveis” em sala de aula? Como a anistia, dentro desta
perspectiva, pode ser inserida no cotidiano escolar, ultrapassando as parcas
linhas que lhe são dedicadas nos livros didáticos? Esta disputa pela memória
não está fora do ciberespaço. A criação de alguns sites tenta “resguardar”
parte dessa memória traumática, especialmente os projetos Memórias da Ditadura,
Brasil Nunca Mais Digit@l, o banco de dados e acervos dos projetos Memórias
Reveladas, Documentos Revelados, Memorial da Anistia e o Acervo Digital da Luta
pela Anistia no Maranhão. Resultado de grandes esforços coletivos de
preservação de nossa memória histórica, o marcante lema do Memorial da Anistia,
“conhecer, reparar e não repetir”, demonstra a grande preocupação e luta para
não esquecermos, naturalizarmos ou silenciarmos nossa(s) história(s).
Temas
sensíveis, preservação e difusão documental: o caso do acervo “Brasil Nunca
Mais”
Com as amplas
possibilidades de acesso aos documentos antes restritos através da aprovação da
Lei de Acesso à Informação (2011), tornaram-se possíveis construções e
compartilhamento de narrativas nas plataformas online. Ao mesmo tempo, foi
viabilizado o acesso aos depoimentos dos agentes sociais que se mobilizaram na
luta por um modelo de democracia distante da ideia de anistia atrelada à
impunidade e ao esquecimento. Esse
modelo, bandeira central dos movimentos sociais, foi silenciado nos currículos,
tendo cada vez menos eco nos livros didáticos. Prevaleceu, assim, um padrão de
entendimento do movimento pela anistia cujas complexidades foram reduzidas à
luta por uma anistia ampla, geral e irrestrita, acabando por vigorar o padrão
de interpretação da anistia pautado por um discurso conciliatório, pacificador
e harmonizador, e que reverbera até os dias de hoje.
Para Marcos Napolitano
(2015), os processos de pacificação e transição, saídos de contextos em que
houve o uso sistemático de violência política, são geralmente acompanhados por
“complexas operações de reconstrução de memória, visando a superar as marcas
traumáticas e fissuras no tecido social e nas instituições.” Articulados entre
complexas operações entre “lembrança e esquecimento”, envolvem um amplo
espectro de atores sociais e políticos que disputam a hegemonia desse processo
[NAPOLITANO, 2015, p. 96]. A articulação entre “verdade, justiça e reparação”,
como ações históricas e sucessivas no tempo, exemplifica o tipo de processo de
superação de um período traumático (o fim da ocupação nazista da França, bem
como o fim da ditadura argentina e sua transição) que “estabeleceram padrões de
memória calcados na reconstrução de ‘discursos de verdade’ e no estabelecimento
de responsabilidades jurídicas e políticas em processos de superação de traumas
políticos” [NAPOLITANO, 2015, p.97].
O viés de preservação
documental e da memória do período ditatorial se faz presente no portal do
projeto Brasil: Nunca Mais Digit@l com base na digitalização e compartilhamento
dos documentos que compuseram o livro publicado pelo projeto criado pelo
Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo. Sob coordenação
do pastor presbiteriano e militante dos direitos humanos Jaime Wright e de D.
Paulo Evaristo Arns, conhecido como “cardeal da resistência”, a obra Brasil:
Nunca Mais, publicada em 15 de julho 1985, que batiza o projeto e o portal, se
auto-intitula uma “reportagem sobre a investigação no campo dos Direitos
Humanos. É uma radiografia inédita da repressão política que se abateu sobre
milhares de brasileiros considerados pelos militares como adversários do regime
inaugurado em abril de 1964” [ARQUEDIOCESE DE SÃO PAULO, 1985, p. 21]. No que
diz respeito ao projeto digit@l, os três principais objetivos eram, de acordo
com a seção Sobre Nós:
“Evitar que os
processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos com o fim da
ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo, obter informações
sobre torturas praticadas pela repressão política e que sua divulgação
cumprisse um papel educativo junto à sociedade brasileira [PORTAL BRASIL: NUNCA
MAIS DIGIT@L, s.d.].
Através da
preservação, digitalização e compartilhamento integral do processo BNM 279, o
projeto Brasil: Nunca Mais Digit@l (disponível em www.bnmdigital.mpf.mp.br)
garante livre acesso aos arquivos anteriormente encontrados apenas em papel e
em microfilme, depositados em Campinas, Brasília ou em Chicago, no Latin
American Microform Project, do Center for Research Libraries, tornando-os
acessíveis a qualquer pessoa, de qualquer lugar. A construção do portal cumpre
um dos objetivos do próprio projeto BNM de possibilitar uma educação pelo viés
da memória histórica e de relações fundamentadas nos direitos humanos. A
possibilidade de pesquisas textuais através de um sofisticado sistema de
buscas, denominada tecnologia Docpro, nos permite pesquisar palavras/termos
diretamente no próprio corpo de uma imagem digitalizada, facilitando
sobremaneira a pesquisa, uma vez que grande parte dos arquivos digitalizados
não permite uma busca por palavras-chave dentro de uma imagem ou arquivo
escaneado. Assim, o acervo disponibilizado para consulta é composto pelo
Relatório BNM, 710 processos do STM, acervo do Conselho Mundial de Igrejas e
documentos da Comissão de Justiça e Paz.
Na função de fornecer
elementos necessários que consolidem o direito à verdade, à memória e à
justiça, especialmente das demandas ainda atuais, como no caso Gomes Lund
versus Brasil (Caso “Guerrilha do Araguaia”), o BNM Digit@l se propõe a aprofundar
(e fundamentar) o debate sobre nosso processo de justiça transicional. Ao
utilizarmos a ferramenta de pesquisa do portal somos orientados à cautela com
relação aos depoimentos que compõem especialmente os processos judiciais, uma
vez que o uso de torturas e outros meios ilícitos foram recorrentes e não podem
ser tomadas como absoluta expressão da verdade.
Ao trazer essa
discussão para a “era digital”, embasado pela perspectiva do fomento à educação
e memória histórica, o site do BNM Digit@L desenvolvido pelo Armazém da Memória
e Instituto de Política Relacionada, com financiamento da Ordem dos Advogados
do Brasil – Seção RJ põe à disposição da sociedade as 29 mil páginas do
processo original BNM 279, de posse do Superior Tribunal Militar concedido para
digitalização em ação da Comissão Nacional da Verdade, e os 543 rolos de
microfilmes depositados em Chicago. Estruturalmente, os conteúdos se dividem
em: histórico do projeto, seção de fotos, vídeos, depoimentos dos
organizadores, reportagens e registros importantes para o BNM e os mecanismos
de pesquisa, sendo possível a busca diretamente nos documentos, através dos
sumários dos processos e a disponibilização de quadros e tabelas contendo
diversas informações levantadas do relatório, com destaque para os organogramas
que tratam dos “aparelhos repressivos” e “organizações de esquerda.” Os quadros
sobre tipificação de tortura contêm sua distribuição geográfica, cronológica,
quadro de sentenças condenatórias e a respectiva duração dos processos.
Conforme avisa o BNM
Digit@l, as fotos digitalizadas no portal estão dispostas em 6 álbuns, contendo
166 fotografias, “aparentemente feitas pela polícia política na repressão e no
monitoramento dos movimentos sociais”. O projeto preservou e digitalizou inclusive
as anotações que se encontravam nestas fotografias, em tese, efetuadas pelos
fotógrafos e policiais a serviço do regime ditatorial.
O resultado das
pesquisas efetuadas está disposto em um sumário dos processos (divididos por
unidade federativa ou organização política), sistematizado em informações
gerais, fases do processo, habeas corpus ou recurso no Supremo Tribunal
Federal, concessão da anistia. Em alguns raros casos, se observou a extinção da
punibilidade. Contudo, o extenso e complexo trabalho de cruzar as informações
desses processos com a possibilidade de enquadrá-los dentro dos benefícios
garantidos pela Lei 6.683 de 1979, segundo o BNM DIGIT@l, encontra dificuldades
com relação à qualidade de algumas imagens do acervo ou dados lacunares e incongruentes
nos processos judiciais.
Considerações
finais
O desenvolvimento de
competências e habilidades no aprendizado, histórico pautado em pressupostos
sobre direitos humanos e cidadania, normatizados pela legislação educacional
brasileira, pode permitir aos alunos a tomada de decisões em diálogo com esses
valores, como justiça e igualdade, e com as (múltiplas) possibilidades de
utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação. Deste modo, a
reapropriação, utilização e recepção dessa cultura digital se dariam em suas
mais variadas linguagens. A análise de algumas iniciativas preocupadas com a
preservação da memória histórica sobre o período ditatorial encontra
reverberações no ciberespaço. A partir de 2011, com a Lei de Acesso à
Informação, a digitalização e disponibilização de documentos, antes
classificados como sigilosos, se tornam a grande bandeira de luta de portais e
sites, como Memórias da Ditadura, Brasil: Nunca Mais Digit@l, Memórias
Reveladas, Documentos Revelados, Acervo Digital da Luta pela Anistia no
Maranhão ou Memorial da Anistia. As correlações entre ensino de História e TICs
podem ser identificadas, além da utilização de metodologias de pesquisa em
portais no ciberespaço, também nas construções de novas narrativas em blogs,
sites, repositórios, redes sociais, fóruns virtuais de discussão, entre muitas
outras possibilidades de interatividade no ciberespaço em torno de temas tão
silenciados, seja por seu caráter controverso, ou pelas limitações intrínsecas
ao formato (ou mesmo proposta) dos livros didáticos.
As particularidades do
ensino dos chamados “temas sensíveis”, ou seja, temas presentes em sociedades
egressas de eventos traumáticos, como regimes ditatoriais ou totalitários. No
caso brasileiro, a anistia constituiu-se em um desses temas, já que está
diretamente relacionada ao processo de fim da Ditadura civil-militar e por ser,
atualmente, interpretada em seu caráter inconcluso. A importância de maiores
problematizações desses temas, quando relacionados às graves violações de direitos
humanos durante o regime ditatorial, pode conduzir à historicização de questões
diretamente relacionadas à cidadania, igualdade, justiça social, liberdade ou
outros direitos historicamente conquistados e fundamentais na construção de um
cidadão crítico e atuante.
Deste modo, ao considerarmos nosso “passado
recente”, como estão sendo abordados os “temas sensíveis” em sala de aula? Como
a anistia, dentro desta perspectiva, pode ser inserida no cotidiano escolar,
ultrapassando as explicações simplificadas ou naturalizadoras que lhe são
dedicadas nos livros didáticos?
Apesar da presença de
algumas importantes discussões acadêmicas, os livros ainda publicizam uma
interpretação do processo de anistia pautado pelo protagonismo dos presidentes
Geisel e Figueiredo, em detrimento das diversas lutas promovidas pelos
movimentos sociais. Assim, as singularidades dos embates e insatisfações em
torno da aprovação da anistia se coadunam com a perspectiva da necessidade de
preservação da memória histórica e documental do período ditatorial brasileiro,
notadamente carente em termos de publicização dos “documentos sensíveis”.
Referências
Leonardo Leal Chaves é
doutorando pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da
Universidade de Coimbra. Bolsista de Extensão do CNPq pelo INCT/Proprietas e
membro do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea (NUPEHIC).
ARQUEDIOCESE DE SÃO
PAULO. Brasil Nunca Mais. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
BITENCOURT, Circe.
Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL, MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO. Base Nacional Curricular Comum, 2017.
BRASIL, Lei 12.527, de
18 de novembro de 2011, Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII
do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da
Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga
a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de
janeiro de 1991; e dá outras providências.
BRASIL, Lei nº 6.683,
de 28 de agosto de 1979, concede anistia e dá outras providências.
FICO, Carlos.
“História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso
brasileiro”. Varia História, Belo Horizonte, vol. 28, n. 47, p. 43-59, jan-jun,
2012.
MONTEIRO, Ana Maria. A
história ensinada: Algumas configurações do saber escolar. História &
Ensino, v. 9, p. 37-62, out. 2003.
NAPOLITANO, Marcos.
“Os historiadores na “batalha da memória”: resistência e transição democrática
no Brasil”. In: QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise (orgs.). História e
memória das ditaduras do século XX, vol. 1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015,
p. 96-108.
Olá, Leonardo. Belo texto.
ResponderExcluirGostaria de saber se, mesmo com a existência da Lei de Acesso à Informação, se houve tentativas, por parte do atual governo, em estabelecer, na esfera federal, a censura ao acesso a parte do acervo documental do "BNM Digital"? Caso tenha ocorrido, como isso aconteceu?
Luciano Araujo Monteiro
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ExcluirBoa noite, Luciano! Obrigado pela pergunta!
ExcluirCensura ao BNM exatamente não. Mas houve uma espécie de tentativa do governo federal de ampliação do número de servidores públicos que seriam autorizados a impor sigilo a documentos. Felizmente o decreto foi revogado.
Leonardo Leal Chaves
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ExcluirOlá, Leonardo.
ExcluirAgradeço o retorno
Esse decreto foi revogado no Legislativo ou por pressão de algum grupo organizado da sociedade civil?
Luciano Araujo Monteiro
Agradeço pelo texto, pelo tema tratado e Destaco a importância que se tem pelo debate sobre este período deplorável da historia do Brasil na vida de muitas pessoas da sociedade brasileira e que é de extrema necessidade que este debate chegue nas aulas de aula com maior notoriedade.
ResponderExcluirDentro de uma questão de descentralização da historia e pensando na realidade do Brasil hoje, principalmente no campo critico e social, como você ver o acesso a historia pela população brasileira em geral e até mesmo o interesse dessas pessoas pela historia, pensando sobre a ditadura militar que voltou atualmente a ser debatido sobre os seus acontecimentos e consequências?
LUAN DE SOUSA BATISTA
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirOlá Luan! Obrigado pela sua questão! Dentro da perspectiva aqui proposta, o acesso a esses documentos, ora sigilosos, sobre a ditadura civil-militar brasileira e sua relação com Ensino de História permite problematizar as particularidades do ensino dos chamados “temas sensíveis”, ou seja, temas presentes em sociedades egressas de eventos traumáticos, como regimes ditatoriais ou totalitários. A importância dessas problematizações sobre esses temas, quando relacionados às graves violações de direitos humanos durante o regime ditatorial, pode conduzir à historicização de questões diretamente relacionadas à cidadania, igualdade, justiça social, liberdade ou outros direitos historicamente conquistados e fundamentais na construção de um cidadão crítico e atuante (tão necessária nos dias de hoje).
ExcluirLeonardo Leal Chaves
Boa tarde, Leandro!
ResponderExcluirBelo texto! Gostaria de saber se vc poderia listar outros acervos documentais que tratariam dos temas sensíveis relacionados a ditadura civil-militar?
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirBoa noite, Eduardo. Obrigado pela participação.
ExcluirA partir de 2011, com a Lei de Acesso à Informação, a digitalização e disponibilização de documentos, antes classificados como sigilosos, se tornam a grande bandeira de luta de portais e sites, como:
a) Portal Memórias da Ditadura (projeto lançado em dezembro de 2014 pelo Instituto Vladimir Herzog. Disponível em http://vladimirherzog.org/portfolio-item/memorias-da-ditadura/);
b) Portal Memórias Reveladas (ocorreu com a implantação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, também chamado de Projeto “Memórias Reveladas”, localizado no Arquivo Nacional – disponível em http://www.memoriasreveladas.gov.br/index.php/institucional;
c) Portal Memorial da Anistia - como parte integrante do projeto “Marcas da Memória”, através de convênio do Ministério da Justiça com o Instituto de Políticas Relacionais, em parceria com o Armazém da Memória http://memorialanistia.org.br/acervo-disponivel/;
d) Portal Documentos Revelados (do ex-militante Aluízio Palmar), disponível em http://www.documentosrevelados.com.br/
As correlações entre ensino de História e Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) podem ser identificadas, além da utilização de metodologias de pesquisa em portais no ciberespaço, também nas construções de novas narrativas em blogs, sites, repositórios, redes sociais, fóruns virtuais de discussão, entre muitas outras possibilidades de interatividade no ciberespaço em torno de temas tão silenciados, seja por seu caráter controverso, ou pelas limitações intrínsecas ao formato (ou mesmo proposta) dos livros didáticos.
As disputas pela memória da anistia (certamente não restrita apenas a ela) no ciberespaço, objeto privilegiado nesta seção, se impõem também em escala regional, não obstante a escassez desses repositórios, com destaque para o trabalho realizado pela Universidade Federal do Pará e seu projeto intitulado “A UFPA e os anos de chumbo: memórias, traumas, silêncios e cultura educacional (1964-1985)”, sob coordenação da professora Edilza Fontes.
Como “produto pedagógico” vinculado à minha dissertação, eu criei o Acervo Digital da Luta pela Anistia no Maranhão (www.acervodigitalanistiamaranhao.net) em que disponibilizo documentação produzida pela polícia política brasileira contra os movimentos sociais que se articulavam em torno da bandeira da anistia no Maranhão.
Leonardo Leal Chaves
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá Leonardo,
ResponderExcluirParabéns pelo belo texto e bela pesquisa.
Vejo que, cada vez mais, é mais complicado trabalhar os temas sensíveis em sala de aula, não acha? Porém, de fato necessário e fundamental para promover debates acerca da história do país e também de seus contextos regionais.
Nesse sentido, gostaria que você abordasse, de acordo com sua pesquisa, como você percebe os esquecimentos. Muito fala-se sobre as lembranças, porem sabemos que a história é construída de lembranças e também de esquecimentos que, para esse tema sensível que você trouxe a tona, é viabilizado através das memórias individuais e coletivas. Então, se quiser e puder, nos fale um pouco se você percebeu nas fontes utilizadas, os esquecimentos.
Muito obrigada e ótimo evento pra você!
Camila de Brito Quadros Lara.