MÚLTIPLAS VISÕES SOBRE PATRIMÔNIO
A partir das
contribuições e das problematizações teóricas incitadas pela disciplina
História e Patrimônio, ministrada em 2019, no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade de Passo Fundo, a seguir, destacam-se conjuntos de
ideias sobre o conceito de “patrimônio”. Por ser este um texto inacabado, tais
ideias não serão comentadas neste momento, apenas citadas. Essas informações
servirão de parâmetros para o recorte temático da tese em andamento, “Oeste
indígena: o patrimônio indígena
construído pelo conhecimento e sua recepção na comunidade escolar do oeste de
Santa Catarina”.
Além disso,
registra-se o parecer de Pedro Ignácio Schmitz, responsável pela criação, no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do primeiro
patrimônio imaterial indígena do Brasil, a arte Oiampi, a maneira de pintar o
corpo de um grupo Tupi do Amapá. Para a composição da referida tese, a
compreensão de alguns conceitos sobre patrimônio são imprescindíveis. Por isso,
toma-se como base o pensamento de múltiplos autores. Inicia-se pelo diagrama
adaptado de Thomas King [apud Brandi, 2009] sobre componentes formadores do
patrimônio cultural:
Figura 1 – Diagrama
relacionado aos componentes do Patrimônio Cultural
Fonte: adaptação com
base em King ([998, 2008 apud Brandi, 2009].
Por meio do diagrama
da figura 1, percebe-se que patrimônio cultural é o entrelaçamento de
documentos históricos, valores sociais, usos culturais do meio ambiente,
práticas religiosas, locais espirituais, recursos históricos, recursos
arqueológicos, itens culturais indígenas e objetos históricos. Noutra
perspectiva, sobre o conceito de “patrimônio cultural”, registra-se que ele
“[...] pode ser definido como o conjunto de manifestações de uma comunidade
(incluindo suas práticas, costumes e valores, expressões artísticas e
culturais, lugares e objetos) que é passado de uma geração a outra” [Rodrigues,
2016, p. 111].
Em outra abordagem a
destacar, de Pinheiro, Moura e Souza [2012, p. 96], “o patrimônio só se
constitui como tal quando faz parte das referências simbólicas e afetivas de
uma dada comunidade”. Embora “indudablemente hay muchos conceptos sobre
patrimonio cultural, ya que cada uno de los campos del conocimiento humanístico
elabora los que corresponden a sus fines” [Palma Peña, 2013, p. 34].
Segundo Durval Muniz
de Albuquerque Júnior [cf. 2018, p. 143-144], a palavra “patrimônio” vem do
grego, articulando as noções de pater (chefe de família ou antepassado) e nomos
(leis, usos ou costumes em comum de uma família ou de uma cidade). O patrimônio
era a herança deixada pelo chefe de família aos seus descendentes ou legado de
uma geração para as gerações futuras. O patrimônio histórico e cultural não
deixa de ser, ainda, o próprio funcionamento da lei do pai, do nome do pai, à
medida que, quase sempre, está definido e referenciado a partir daqueles que
são dominantes e dominadores em cada época e lugar.
Em virtude dos
nacionalismos, o passado foi erigido como patrimônio a partir do nascente
conceito de estado nacional, fundado na homogeneidade. O patrimônio ligava-se à
noção de compartilhamento de uma origem, um território e uma cultura [cf.
Funari; Pelegrini; Rambelli, 2009, p. 9]. Nesse sentido, Brandi [2009]
argumenta que a ideia de “patrimônio advém da importância em se traduzir para a
esfera do imaginário coletivo – simbólico – as transformações sociais que
acompanharam as constituições dos Estados Modernos”, independentemente de
autores como Albuquerque Júnior [2018], por exemplo, observarem a origem do
termo ainda na Antiguidade.
Françoise Choay [cf. 2006,
p. 11] escreve que a expressão “patrimônio” designa um bem destinado ao
usufruto de uma comunidade, constituído pela acumulação contínua de uma
diversidade de objetos que se congregam por seu passado comum [...] produtos de
todos os saberes e savoir-faire dos seres humanos. Para Dominique Poulot [2011,
p. 32], “patrimônio encarna, em suma, um ‘crescendo em generalidade’ de obras e
objetos singulares, concebido de forma útil para a ação de conhecimento e de
conservação coletiva”. O autor segue escrevendo que o patrimônio se tornou
símbolo de elo social e é um instrumento quase sempre decisivo para o
desenvolvimento local [cf. Poulot, 2011, 27].
O patrimônio cultural
é constituído dos mais diversos elementos e se apresenta, convencionalmente,
dividido em patrimônio imaterial e patrimônio material. Entende-se por
patrimônio imaterial tudo o que está relacionado aos modos de fazer das
pessoas, às técnicas e habilidades, aos valores e às crenças; por patrimônio
material, os produtos da criação humana, como os artefatos, os objetos e as
construções, por exemplo – também a cultura material dos povos pré-históricos
indígenas pode ser percebida como patrimônio material [cf. Rodrigues, 2016, p.
111].
Segundo a abordagem de
Poulot [cf. 2011, p. 41], a tentativa de construir uma história patrimonial da
cultura material exige debruçar-se sobre a erudição e o colecionismo, suas
disposições tácitas, suas pequenas ferramentas, suas fruições mudas. Em suma,
sobre todos os gestos e saberes que organizam a percepção e a representação dos
objetos em função de hierarquias entre saberes locais, vínculos
particularizados e o horizonte de conhecimentos gerais de um homem de
sociedade. Por outro lado, Simone Scifoni [2006, p. 74] registra que “é na
escala local que se pode encontrar o patrimônio como expressão das práticas
sociais, um patrimônio reivindicado por sua função ligada à memória e à
identidade coletiva ou como busca de qualidade de vida”.
Ilanil Coelho e Denis
Radun [2016, p. 41] ressaltam que “é preciso reconhecer o fato de que a
valorização e a apropriação social do patrimônio cultural são processos e não
imperativos”. Albuquerque Junior [2018, p. 144] argumenta que, “desde o
princípio, a escolha do patrimônio, daquilo a ser legado, é um gesto político,
nasce de escolhas, de operações de exclusão, de esquecimento e de apagamento”.
Todavia, considera-se que os patrimônios são “como outros tantos ‘modos
apropriados’ de tratar o passado” [Ginzburg apud Poulot, 2011, p. 41]. Sobre
esse passado, Le Goff [apud D’Alessio, 2011, p. 64] registra que: “o
reconhecimento do passado liberta os homens do aprisionamento no vivido,
possibilitando-lhes experimentar a alteridade no tempo”.
Em 10 de julho de
2019, em São Leopoldo (RS), no Instituto Anchietano de Pesquisa (IAP), o padre
jesuíta, Pedro Ignácio Schmitz concedeu uma entrevista relacionada às ocupações
indígenas pré-coloniais do oeste de Santa Catarina. Naquela conversa, também
tratou sobre as ações políticas da patrimonialização no âmbito da cultura
indígena:
“[...] o termo
patrimônio está ligado ao antigo pater famílias romanas e designava a sua
propriedade. O patrimônio se tornou alguma coisa forte com a ONU [Organização
das Nações Unidas], depois da Segunda Guerra, quando surgiu a UNESCO
[Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura] e os Estados
começaram a selecionar e sancionar aspectos da cultura e os declarava de valor
nacional. Depois da Segunda Guerra foram destinadas somas enormes para
caracterizar as culturas e as línguas de todo o mundo, para que não se
perdessem, assim também aconteceu no Brasil. Mas o patrimônio nasce do povo, da
comunidade que o identifica, o reconhece como um valor seu e passa a usá-lo
como tal. O Estado pode sancioná-lo ou deixá-lo no âmbito da comunidade. Ele é
um elemento do passado, que eu consegui entender, que consegui amar e que agora
faz parte de minha vida. Na maior parte do tempo ele compreendia basicamente
elementos materiais, como casas, castelos, fortalezas, igrejas, estátuas,
artefatos e vestes, hoje inclui também elementos não materiais, como maneiras
de fazer, como a entronização do imperador japonês ou a maneira de fazer as
panelas de barro das oleiras da Bahia. O índio e suas coisas passaram a ser
patrimônio e, no Dia do Índio, se procurava mostrar isto nas escolas. Nos
museus escolares e também em museus especializados se exibiam seus objetos.
Mais recentemente também se começaram a destacar e declarar de interesse
nacional maneiras de fazer indígenas. O primeiro deles foi à arte Oiampi, a
maneira de pintar o corpo de um grupo Tupi do Amapá. Eu relatei este processo
no Conselho Consultivo do IPHAN. Também as populações indígenas se tornaram
conscientes de seus valores tanto materiais como não materiais. E a população
nacional como considera estes patrimônios indígenas? O Estado brasileiro pode
oficializar esta consideração e transformá-los, explicitamente, em patrimônio
da nação brasileira” [Schmitz, 2019].
Schmitz ressalta que o
termo “patrimônio” poderia ser comparado à herança cultural de uma população.
Ações em benefício do patrimônio das nações, em âmbito mundial, tornaram-se
mais presentes a partir do final da Segunda Guerra, com a criação da ONU e de
seu braço cultural, a UNESCO. Para Schmitz, o patrimônio é um elemento do
passado, que a comunidade considera seu; ela entende-o, ama-o e populariza-o
para as gerações seguintes. Também lembra o autor que as populações indígenas
se tornaram conscientes de seus patrimônios materiais e imateriais e que
depende do Estado brasileiro oficializar e transformar o patrimônio cultural
indígena em patrimônio da nação brasileira.
As práticas e os
saberes indígenas, como patrimônio, tiveram um reconhecimento tardio, por meio
da Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Essa lei dispõe sobre o Estatuto do
Índio e, no Art. 1º, regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das
comunidades indígenas, com o propósito de preservar sua cultura e integrá-los,
progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Comparativamente à produção
histórico-cultural branca, europeia, cristã, é muito tardia a valorização do
patrimônio cultural indígena e suas materialidades.
Referências
Valdirene Chitolina é
graduada em História pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas
(1992), mestre em História Regional pela Universidade de Passo Fundo (2008) e
doutoranda em História pela UPF, com a modalidade de bolsa Fupf/Capes 100%.
Vínculo profissional: Prefeitura de Xaxim.
E-mail:<valdirenechitolina@yahoo.com.br>.
ALBUQUERQUE JÚNIOR,
Durval Muniz de. A melancolia dos objetos: algumas reflexões em torno do tema
do patrimônio histórico e cultural. In: BAUER, Leticia; BORGES, Viviane
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Como o próprio artigo sugere, você apresentou múltiplas visões sobre o patrimônio, o que ficou como dúvida pra mim foi, levando em consideração a sua pesquisa "Oeste indígena", quais visões serão prioridade pra essa análise? Quais você acha que melhor dialogam e se encaixam no estudo do patrimônio cultural indígena? Seriam consideradas, de fato, todas essas visões?
ResponderExcluirMariana Freitas de Andrade.
Gostaria de compreender, segundo a sua análise, quais avanços a preservação de práticas indígenas trazem para a proteção destes grupos e de suas especificidades?
ResponderExcluirCarine Alves Silva
Prezada Valdirene,
ResponderExcluirParabéns pelo trabalho! Embora ainda em desenvolvimento (como citado), você trouxe conceitos extremamente pertinentes para compreender as rupturas e permanências dentro do vasto campo do Patrimônio. A reflexão sobre o senso de pertencimento e a criação da identidade em relação ao patrimônio cultural local também foi muito elucidativa, ao tratar do reconhecimento da arte Oiampi, que eu particularmente conhecia como Wajãpi (trata-se do mesmo registro no IPHAN?). Porém, fiquei curiosa em relação às atividades de difusão do bem registrado: depois da sua inscrição no Livro de Registro das Formas de Expressão em 2002, quais foram as formas de divulgar a arte Kusiwa a nível local e nacional? Foi somente no âmbito do IPHAN ou a própria comunidade local teve participação?
Agradeço desde já pelas reflexões propostas e aguardo seu retorno!
Abraços,
Geovana Erlo.
Muito obrigada pelos esclarecimentos! Abraços!
ResponderExcluirOlá Valdirene, tudo bem?
ResponderExcluirVejo que, assim como eu, você é pesquisadora de doutorado da área de patrimônio cultural e história regional. É muito bom conhecer "colegas de pesquisa", como também militantes da área, nos eventos que nos são oferecidos. Muito interessante a sua contextualização no texto, viu? Na verdade queria trocar uma ideia com você sobre essas múltiplas visões sobre o patrimônio. Essa é uma questão que sempre me "incomodou", visto que no Brasil, há várias categorias - cultural, natural, material, imaterial, bens móveis, imóveis, e por aí vai... Me parece que, por vezes esse esforço em categorizar, rotular, engessa nossas práticas como também interfere nas ações de políticas públicas. Sabemos que o patrimônio cultural é múltiplo e diverso, complexo, repleto de especificidades. Mas minhas questão para você é: Como você percebe a discussão sobre o patrimônio integral? Que permeia os aspectos materiais e imateriais contidos no processo? Ou seja, a ideia seria mesmo categorizar ou integrar o patrimônio? O que você pensa a respeito?
Enfim... é mais a nível de troca de experiências mesmo, ok?
Agradeço sua contribuição e ótimo evento!
Camila de Brito Quadros Lara.
Olá, Valdirene! Primeiramente, obrigada pela contribuição! Considerando a pluralidade de definições/entendimentos acerca do que é patrimônio cultural, e sobretudo os diferentes significados que o conceito adquiriu ao longo do tempo, gostaria que você discorresse sobre a importância do reconhecimento das práticas e saberes indígenas como patrimônio nacional nos últimos tempos. Obrigada!
ResponderExcluirAss.: Natália Martins de Oliveira Gonçalves.