O ENSINO DE HISTÓRIA DIANTE DAS CONCEPÇÕES FAMILIARES PARA A SOCIEDADE E O DIREITO
O presente trabalho
propõe o entendimento do ensino histórico das estruturas familiares diante das
transformações das relações sociais e jurídicas vivenciadas ao longo da
realidade histórica brasileira.
Esse contexto é
marcado por uma série de processos de exclusão social devido a crenças
religiosas, persistência de estigmas sociais e, principalmente, do abandono do
poder do Estado frente às necessidades de parcelas sociais relacionadas à
temática.
Diante disso, urge a
busca pelo ensino histórico da pluralidade na esfera familiar como forma de se
moldar novos contornos históricos em um contexto de combate a preconceitos e de
maior respeito às variadas formas de constituição familiar, visto que ao longo
da história social e jurídica do Brasil, diversos setores sociais foram
discriminados devido à persistência de um “modelo familiar” discriminatório.
Assim, é através do
ensino da realidade histórica das relações familiares no Brasil que se pode
construir um novo contexto de reconhecimento da evolução e da consciência
histórica da própria sociedade brasileira.
Introdução
Em primeiro lugar, a
concepção de família ao longo da história segue um padrão conforme a ordem
moral e religiosa dominantes na esfera social, o que leva à imposição de um
modelo de família que é aceito por esse âmbito em detrimento daqueles que não
se inserem nos padrões familiares estabelecidos.
Logo, é importante
entender que até alcançar o cenário atual, a estrutura familiar constituía
também a principal forma de formação da consciência histórica principalmente
por meio da oralidade associada ao mundo familiar de teor mítico.
Cabe, então, ao Ensino
de História, buscar ultrapassar os limites do âmbito da educação formal para
também entender a esfera familiar enquanto via que leva ao desenvolvimento e
também ao retrocesso de percursos que sejam mais democráticos na vida em sociedade.
Em vista disso, o
ensino da história familiar deve compreender uma associação entre a instituição
familiar e a esfera do ensino escolar formal, pois a escola não pode ignorar
que a família é o elemento primordial da formação da mentalidade histórica das
novas gerações [Barca, 2001, p. 15].
Nesse sentido, é
importante observar que a família enquanto instituição social exerce, ao longo
da história, um importante papel para a construção do seu modelo “aceitável” e
do próprio ensino histórico das novas gerações e, consequentemente, é capaz de
moldar a sua própria “configuração” em conjunto com outras instituições sociais
tais como a escola e o Estado.
Por tudo isso,
utilizando-se como base a pesquisa realizada por Seixas [1999], a família
exerce influências significativas sobre o saber e o processo de ensino
histórico pois é um elemento integrante de uma parcela do processo de
aprendizagem histórica.
Além disso, Barton e
Levstik [2004] observam que a esfera sociofamiliar é responsável por contribuir
com a visão histórica abordada pela escola, pois o ensino histórico perpassa
também as diversas esferas de socialização nas quais os indivíduos estão
inseridos.
Em virtude disso, o
Ensino de História não deve se restringir apenas à educação formal, pois a família
é um sujeito ativo no processo de aquisição de saberes históricos. Sendo assim,
as concepções de família conforme as diversas realidades apresentadas pela
religião, pelo Estado, sociedade e pelo direito podem ser dispostas para
entender que a relação entre educação e história perpassa os limites do âmbito
escolar, visto que a aprendizagem histórica deve ser plural tal como as
diversas noções de família abordadas previamente.
Heranças
do mundo antigo
Assim, é possível
observar que a construção grega do conceito de família não se vinculava ao
afeto tal como posteriormente em Roma [Barreto, 2013, p. 206], pois, os gregos
clássicos concebiam um conceito primitivo de família ligado ao mundo da
mitologia [Coulanges. Apud. Sousa; Waqim, 2015, p.72].
Evidencia-se ainda que
na antiguidade, havia a clara confusão entre Religião, Moral e Direito, pois
desde a Lei Judaica, ou seja, por volta de 1800 a.C., a significação de família
no mundo ocidental está associada à imposição de um modelo homem-mulher [heteronormativo]
associado ao papel do meio familiar para a reprodução e procriação [Mott, 2015,
p.17].
Cenários
da esfera religiosa da Idade Média à Modernidade
Posteriormente à
Antiguidade, na Idade Média, percebe-se a manutenção histórica da concepção de
família atrelada à relação entre homem e mulher. Assim, Luiz Mott [2015, pp.
17-18] ressalta que, durante os séculos XV-XX, o surgimento da Inquisição levou
à perseguição de todos aqueles que rompiam com esse paradigma e,
consequentemente, as relações homoafetivas eram totalmente proibidas na Igreja
e no amplo espectro social.
Isso expõe que não
havia espaço para a constituição de uma família homoafetiva ou, somando-se ao
caso anterior dos filhos rejeitados, de uma família diferente do que se
defendia na esfera social, pois os livros da Igreja [2015, p. 22], desde os
séculos VI-X, condenavam a sodomia, sendo São Pedro Damiani [1007-1072], o
primeiro escritor que concebeu uma obra exclusiva para tal crime.
Ademais, ainda sob a
óptica de influências da Igreja, é válido observar que o Direito Canônico
propiciou a implantação do casamento como “sacramento” e dogma para que se
existisse a família [Barreto, 2013, p. 207]. Assim, o matrimônio era a condição
para a existência do espaço de convívio familiar, sendo que apenas os filhos
originados do matrimônio seriam legítimos, o que levava à distinção dentre os
filhos e também à falta de paternidade.
Após o Medievo, diante
da permanência da concepção de família “heteroafetiva” com fins de procriação e
de filhos legítimos, percebe-se que o Humanismo dos séculos XV-XVI, com o
antropocentrismo, e o Iluminismo do século XVIII, com as noções de liberdade e
igualdade, propuseram a valorização do pensamento racional. Contudo, tal
realidade pouco se modificou e, durante a Revolução Industrial [séculos
XVIII-XIX], os direitos da população infanto-juvenil tomaram um rumo de sérias
violações à infância na contramão dos ideais supracitados. Isso se explicita
pela noção do labor infantil também repercutir no cenário das fábricas, visto
que as crianças eram exploradas em prol de auxiliar no sustento familiar.
Sob
uma nova concepção de Estado
Sobretudo quanto ao
horizonte de mudança,
“Na Europa do século
XIX, a filantropia, filha do Iluminismo, do Higienismo e da Revolução Industrial,
começou a compartilhar com a assistência caritativa os mesmos objetivos. No
entanto, essa fase perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial, pois, em
meados do século XX, o Estado assumiu a responsabilidade pela assistência e
pela proteção da infância desvalida, dando início à fase denominada Estado do
Bem-estar Social”. [Santos, 2010, p.66]
Nesse sentido, durante
a transição entre a modernidade e a contemporaneidade, o trabalho infantil era
recorrente e visto como uma forma de prover as necessidades da família. Logo,
diante de uma realidade de sérias desigualdades sociais e da maioria
populacional ser de baixa formação educacional, o Estado e a sociedade
ignoravam a possibilidade de desenvolvimento dessas crianças e adolescentes
para que estes fossem inseridos no sistema produtivo e trouxessem retornos
financeiros para a família. Contudo, essa é uma situação que ainda persiste
apesar de muitos avanços socioeconômicos vivenciados pelo país desde o século
passado.
Por isso, aquele
cenário da Revolução Industrial de afronta aos direitos humanos, em especial de
mulheres e crianças do espaço familiar, persistiu formalmente até a década de
1940. Esse foi o momento em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos [1948]
possibilitou que os indivíduos deixassem de ser meros objetos de direito para
serem sujeitos ativos dos sistemas jurídicos e de relações jurídicas mais
equilibradas, o que permitiu a maior abertura do espaço familiar à proteção do
Estado e de sua estrutura jurídica.
Breve
Recorte de Avanços Jurídicos
Como consequência do
desenvolvimento econômico e social, a esfera jurídica também sofreu
metamorfoses ao longa de sua histórica, sendo importante destacar alguns
episódios marcantes da história recente brasileira que contribuem para
construção do Ensino de História associado à pluralidade e à relevância da
esfera familiar para se entender a própria história:
O primeiro grande
avanço foi possível por meio da Lei 883/1949. Esta, no Art. 2º “Qualquer que
seja a natureza da filiação, o direito à herança será reconhecido em igualdade
de condições” [BRASIL, 1949], expôs que a isonomia de direitos entre os filhos
passou a adentrar na seara jurídica, propiciando maior igualdade no espaço das
configurações familiares e o combate à diferenciação entre os filhos
constituintes da estrutura familiar.
Ademais, a Lei
4.121/1962 [Estatuto da Mulher Casada] tentou reduzir as desigualdades de
gênero no âmbito do matrimônio, logo, observa-se que o Art. 246º declara que a
mulher poderia exercer profissão lucrativa “livremente” e a aproveitar os
produtos do seu trabalho, apesar de que ainda se admitia até a existência do
“dote” [BRASIL, 1962].
Em outra perspectiva,
a Lei nº 6.515 de 1977 foi o marco para o divórcio no Brasil ao tratar da
“dissolução da sociedade conjugal e do casamento”, o que possibilitou uma
histórica abertura no espaço de convívio familiar principalmente para os
direitos da mulher diante de uma realidade sóciojurídica discriminatória e
paternalista.
Soma-se a isso a Lei
nº 6.697 de 1979 [Código de Menores], a qual buscou mitigar a quantidade de
crianças que estavam a viver nas ruas das cidades [Barreto, 2013, p. 211],
tendo promovido políticas públicas de assistência, proteção e vigilância
direcionada principalmente aos menores em situação de abandono ou submetidos à
violência doméstica e maus tratamentos.
Após esse contexto, em
1988, a Constituição Federal normatizou a “união estável”, apesar de não
reconhecer a existência normativa de relações homoafetivas, por exemplo, o que
permaneceu ignorado pelo Código Civil de 2002 e pelo Estado até a decisão do
Supremo Tribunal Federal em 2011. Esta passou a ter caráter vinculante ao
afirmar ser inconstitucional a discriminação sofrida pelas uniões homoafetivas,
as quais passaram a ter o reconhecimento como uniões estáveis, além da
possibilidade de casamento civil posteriormente regulamentado pela Resolução
175/2013 do Conselho Nacional de Justiça [BRASIL, 2013].
Ainda conforme a
Constituição [1988],
“Art. 227. É dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e
à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 6º – Os filhos,
havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos
e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação”. [BRASIL, 1988]
Por isso, é papel do
âmbito familiar, para além da esfera social e do poder público, promover os
direitos das novas gerações, pois, sob maior proteção constitucional, as crianças
e os adolescentes não podem ser submetidos à privação de liberdade, à fome, à
discriminação e à tratamentos violentos, por exemplo.
Sob tal óptica, a
igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana são fundamentos
indispensáveis para se reconhecer a família do Estado de Direito democrático,
pois a família deve ser entendida enquanto unidade de configurações plurais e,
para além do matrimônio, como espaço de afeto [Pereira. Apud. Sousa; Waqim,
2015, p. 76] e de desenvolvimento da pessoa humana em todas as suas condições.
Considerações
Finais
É necessário
compreender o ensino histórico associado à esfera familiar e não somente à
educação escolar formal, pois a família exerce um papel importante na formação
das novas gerações.
Diante disso, são
significantes os avanços conquistados que possibilitaram novos modelos de
configuração familiar sob a esfera jurídica, por exemplo, além da maior
aceitação social a tais transformações mesmo diante do cenário religioso.
Todavia, é necessário considerar que a realidade da família brasileira ainda é
alicerçada em bases discriminatórias, o que fomenta, por exemplo, a exclusão
das uniões homoafetivas e de filhos de relacionamentos extraconjugais do espaço
de convívio familiar e da própria sociedade.
Por tudo isso, a
perspectiva histórica associada às noções sociojurídicas apresentadas poderá
levar, então, a um debate sobre o âmbito histórico de formação das raízes da
estrutura familiar brasileira e suas consequências para a compreensão da
formação histórica da sociedade hodierna e suas concepções acerca das
configurações familiares.
Dessa maneira, é
indispensável a compreensão de uma nova história familiar onde a pluralidade
seja capaz de se estabelecer sem passar por históricos processos religiosos,
políticos, jurídicos e sociais de abandono e discriminação.
Referências
Matheus Mendes Bomfim
Marques é graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa [UFV] e
atualmente desenvolve e coordena pesquisas e projetos com foco nas áreas de
Direitos Humanos e Ciência Política na América Latina, Cáucaso e Sudeste
Africano, além de História, Hermenêutica e Filosofia Jurídica na perspectiva do
Direito Comparado teuto-brasileiro. Ademais, é Resource Person da Cameroon
Association of Active Youths [CAMAAY]; voluntário das Nações Unidas [UNV] e do
Projeto de Extensão Tutelando Conselhos [TC]; e membro ativo da American Bar
Association [ABA], Amnesty International [AMNESTY], American Planning
Association [APA] e da Association for Women’s Rights in Development [AWID].
BARCA, Isabel.
Educação Histórica: uma nova área de investigação. Revista da Faculdade de
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Silva. “Evolução histórica e legislativa da família” in Série Aperfeiçoamento
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Olá, parabéns pelo estudo! Acho que o olhar para a família na qual se inserem os alunos é essencial para a educação em todas as disciplinas. O resgate da história do desenvolvimento das noções de família que você apresenta são muito importantes para entendermos a nossa sociedade. Minha pergunta é a seguinte: você conhece ou trabalha com o conceito de habitus, capitais e campos de Bourdieu? Esse autor trabalha na perspectiva da família como um campo de relações que formula determinado habitus. O habitus, basicamente, seria seria o senso prático do que se deve fazer em certa ocasião. Ele é produzido pelos condicionamentos sociais, pelos bens e propriedades do sujeito, ou seja, dependendo do seu
ResponderExcluircapital econômico, cultural e espaço social. Acho que essa percepção poderia agregar na sua pesquisa, o que achas?
Bárbara Birk de Mello
Prezada Bárbara,
ResponderExcluirExcelente ideia! Conheci o trabalho de Bourdieu no último ano, todavia, ainda não havia pensado sobre essa relação.
Acredito que os condicionamentos sociais são realmente indispensáveis para a formação das definições de família que a sociedade possui e seus reflexos na esfera política e juridica, por exemplo. Além disso, o habitus da noção de família também teria variações (como de religião e ética) tendo em vista as diversas constituições de família e a pluralidade de pensamentos que o próprio convívio familiar proporciona sobre a aprendizagem histórica e suas interfaces.
Att.
Matheus Mendes Bomfim Marques