Matheus Mendes Bomfim Marques


O ENSINO DE HISTÓRIA DIANTE DAS CONCEPÇÕES FAMILIARES PARA A SOCIEDADE E O DIREITO




O presente trabalho propõe o entendimento do ensino histórico das estruturas familiares diante das transformações das relações sociais e jurídicas vivenciadas ao longo da realidade histórica brasileira.

Esse contexto é marcado por uma série de processos de exclusão social devido a crenças religiosas, persistência de estigmas sociais e, principalmente, do abandono do poder do Estado frente às necessidades de parcelas sociais relacionadas à temática.

Diante disso, urge a busca pelo ensino histórico da pluralidade na esfera familiar como forma de se moldar novos contornos históricos em um contexto de combate a preconceitos e de maior respeito às variadas formas de constituição familiar, visto que ao longo da história social e jurídica do Brasil, diversos setores sociais foram discriminados devido à persistência de um “modelo familiar” discriminatório.

Assim, é através do ensino da realidade histórica das relações familiares no Brasil que se pode construir um novo contexto de reconhecimento da evolução e da consciência histórica da própria sociedade brasileira.

Introdução
Em primeiro lugar, a concepção de família ao longo da história segue um padrão conforme a ordem moral e religiosa dominantes na esfera social, o que leva à imposição de um modelo de família que é aceito por esse âmbito em detrimento daqueles que não se inserem nos padrões familiares estabelecidos.

Logo, é importante entender que até alcançar o cenário atual, a estrutura familiar constituía também a principal forma de formação da consciência histórica principalmente por meio da oralidade associada ao mundo familiar de teor mítico.

Cabe, então, ao Ensino de História, buscar ultrapassar os limites do âmbito da educação formal para também entender a esfera familiar enquanto via que leva ao desenvolvimento e também ao retrocesso de percursos que sejam mais democráticos na vida em sociedade.

Em vista disso, o ensino da história familiar deve compreender uma associação entre a instituição familiar e a esfera do ensino escolar formal, pois a escola não pode ignorar que a família é o elemento primordial da formação da mentalidade histórica das novas gerações [Barca, 2001, p. 15].

Nesse sentido, é importante observar que a família enquanto instituição social exerce, ao longo da história, um importante papel para a construção do seu modelo “aceitável” e do próprio ensino histórico das novas gerações e, consequentemente, é capaz de moldar a sua própria “configuração” em conjunto com outras instituições sociais tais como a escola e o Estado.

Por tudo isso, utilizando-se como base a pesquisa realizada por Seixas [1999], a família exerce influências significativas sobre o saber e o processo de ensino histórico pois é um elemento integrante de uma parcela do processo de aprendizagem histórica.

Além disso, Barton e Levstik [2004] observam que a esfera sociofamiliar é responsável por contribuir com a visão histórica abordada pela escola, pois o ensino histórico perpassa também as diversas esferas de socialização nas quais os indivíduos estão inseridos.

Em virtude disso, o Ensino de História não deve se restringir apenas à educação formal, pois a família é um sujeito ativo no processo de aquisição de saberes históricos. Sendo assim, as concepções de família conforme as diversas realidades apresentadas pela religião, pelo Estado, sociedade e pelo direito podem ser dispostas para entender que a relação entre educação e história perpassa os limites do âmbito escolar, visto que a aprendizagem histórica deve ser plural tal como as diversas noções de família abordadas previamente.

Heranças do mundo antigo
Assim, é possível observar que a construção grega do conceito de família não se vinculava ao afeto tal como posteriormente em Roma [Barreto, 2013, p. 206], pois, os gregos clássicos concebiam um conceito primitivo de família ligado ao mundo da mitologia [Coulanges. Apud. Sousa; Waqim, 2015, p.72].

Evidencia-se ainda que na antiguidade, havia a clara confusão entre Religião, Moral e Direito, pois desde a Lei Judaica, ou seja, por volta de 1800 a.C., a significação de família no mundo ocidental está associada à imposição de um modelo homem-mulher [heteronormativo] associado ao papel do meio familiar para a reprodução e procriação [Mott, 2015, p.17].

Cenários da esfera religiosa da Idade Média à Modernidade
Posteriormente à Antiguidade, na Idade Média, percebe-se a manutenção histórica da concepção de família atrelada à relação entre homem e mulher. Assim, Luiz Mott [2015, pp. 17-18] ressalta que, durante os séculos XV-XX, o surgimento da Inquisição levou à perseguição de todos aqueles que rompiam com esse paradigma e, consequentemente, as relações homoafetivas eram totalmente proibidas na Igreja e no amplo espectro social.

Isso expõe que não havia espaço para a constituição de uma família homoafetiva ou, somando-se ao caso anterior dos filhos rejeitados, de uma família diferente do que se defendia na esfera social, pois os livros da Igreja [2015, p. 22], desde os séculos VI-X, condenavam a sodomia, sendo São Pedro Damiani [1007-1072], o primeiro escritor que concebeu uma obra exclusiva para tal crime.

Ademais, ainda sob a óptica de influências da Igreja, é válido observar que o Direito Canônico propiciou a implantação do casamento como “sacramento” e dogma para que se existisse a família [Barreto, 2013, p. 207]. Assim, o matrimônio era a condição para a existência do espaço de convívio familiar, sendo que apenas os filhos originados do matrimônio seriam legítimos, o que levava à distinção dentre os filhos e também à falta de paternidade.

Após o Medievo, diante da permanência da concepção de família “heteroafetiva” com fins de procriação e de filhos legítimos, percebe-se que o Humanismo dos séculos XV-XVI, com o antropocentrismo, e o Iluminismo do século XVIII, com as noções de liberdade e igualdade, propuseram a valorização do pensamento racional. Contudo, tal realidade pouco se modificou e, durante a Revolução Industrial [séculos XVIII-XIX], os direitos da população infanto-juvenil tomaram um rumo de sérias violações à infância na contramão dos ideais supracitados. Isso se explicita pela noção do labor infantil também repercutir no cenário das fábricas, visto que as crianças eram exploradas em prol de auxiliar no sustento familiar.

Sob uma nova concepção de Estado
Sobretudo quanto ao horizonte de mudança,

“Na Europa do século XIX, a filantropia, filha do Iluminismo, do Higienismo e da Revolução Industrial, começou a compartilhar com a assistência caritativa os mesmos objetivos. No entanto, essa fase perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial, pois, em meados do século XX, o Estado assumiu a responsabilidade pela assistência e pela proteção da infância desvalida, dando início à fase denominada Estado do Bem-estar Social”. [Santos, 2010, p.66]

Nesse sentido, durante a transição entre a modernidade e a contemporaneidade, o trabalho infantil era recorrente e visto como uma forma de prover as necessidades da família. Logo, diante de uma realidade de sérias desigualdades sociais e da maioria populacional ser de baixa formação educacional, o Estado e a sociedade ignoravam a possibilidade de desenvolvimento dessas crianças e adolescentes para que estes fossem inseridos no sistema produtivo e trouxessem retornos financeiros para a família. Contudo, essa é uma situação que ainda persiste apesar de muitos avanços socioeconômicos vivenciados pelo país desde o século passado.

Por isso, aquele cenário da Revolução Industrial de afronta aos direitos humanos, em especial de mulheres e crianças do espaço familiar, persistiu formalmente até a década de 1940. Esse foi o momento em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos [1948] possibilitou que os indivíduos deixassem de ser meros objetos de direito para serem sujeitos ativos dos sistemas jurídicos e de relações jurídicas mais equilibradas, o que permitiu a maior abertura do espaço familiar à proteção do Estado e de sua estrutura jurídica.

Breve Recorte de Avanços Jurídicos
Como consequência do desenvolvimento econômico e social, a esfera jurídica também sofreu metamorfoses ao longa de sua histórica, sendo importante destacar alguns episódios marcantes da história recente brasileira que contribuem para construção do Ensino de História associado à pluralidade e à relevância da esfera familiar para se entender a própria história:

O primeiro grande avanço foi possível por meio da Lei 883/1949. Esta, no Art. 2º “Qualquer que seja a natureza da filiação, o direito à herança será reconhecido em igualdade de condições” [BRASIL, 1949], expôs que a isonomia de direitos entre os filhos passou a adentrar na seara jurídica, propiciando maior igualdade no espaço das configurações familiares e o combate à diferenciação entre os filhos constituintes da estrutura familiar.

Ademais, a Lei 4.121/1962 [Estatuto da Mulher Casada] tentou reduzir as desigualdades de gênero no âmbito do matrimônio, logo, observa-se que o Art. 246º declara que a mulher poderia exercer profissão lucrativa “livremente” e a aproveitar os produtos do seu trabalho, apesar de que ainda se admitia até a existência do “dote” [BRASIL, 1962].

Em outra perspectiva, a Lei nº 6.515 de 1977 foi o marco para o divórcio no Brasil ao tratar da “dissolução da sociedade conjugal e do casamento”, o que possibilitou uma histórica abertura no espaço de convívio familiar principalmente para os direitos da mulher diante de uma realidade sóciojurídica discriminatória e paternalista.

Soma-se a isso a Lei nº 6.697 de 1979 [Código de Menores], a qual buscou mitigar a quantidade de crianças que estavam a viver nas ruas das cidades [Barreto, 2013, p. 211], tendo promovido políticas públicas de assistência, proteção e vigilância direcionada principalmente aos menores em situação de abandono ou submetidos à violência doméstica e maus tratamentos.

Após esse contexto, em 1988, a Constituição Federal normatizou a “união estável”, apesar de não reconhecer a existência normativa de relações homoafetivas, por exemplo, o que permaneceu ignorado pelo Código Civil de 2002 e pelo Estado até a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2011. Esta passou a ter caráter vinculante ao afirmar ser inconstitucional a discriminação sofrida pelas uniões homoafetivas, as quais passaram a ter o reconhecimento como uniões estáveis, além da possibilidade de casamento civil posteriormente regulamentado pela Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça [BRASIL, 2013].

Ainda conforme a Constituição [1988],

“Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. [BRASIL, 1988]

Por isso, é papel do âmbito familiar, para além da esfera social e do poder público, promover os direitos das novas gerações, pois, sob maior proteção constitucional, as crianças e os adolescentes não podem ser submetidos à privação de liberdade, à fome, à discriminação e à tratamentos violentos, por exemplo.

Sob tal óptica, a igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana são fundamentos indispensáveis para se reconhecer a família do Estado de Direito democrático, pois a família deve ser entendida enquanto unidade de configurações plurais e, para além do matrimônio, como espaço de afeto [Pereira. Apud. Sousa; Waqim, 2015, p. 76] e de desenvolvimento da pessoa humana em todas as suas condições.

Considerações Finais
É necessário compreender o ensino histórico associado à esfera familiar e não somente à educação escolar formal, pois a família exerce um papel importante na formação das novas gerações.

Diante disso, são significantes os avanços conquistados que possibilitaram novos modelos de configuração familiar sob a esfera jurídica, por exemplo, além da maior aceitação social a tais transformações mesmo diante do cenário religioso. Todavia, é necessário considerar que a realidade da família brasileira ainda é alicerçada em bases discriminatórias, o que fomenta, por exemplo, a exclusão das uniões homoafetivas e de filhos de relacionamentos extraconjugais do espaço de convívio familiar e da própria sociedade.

Por tudo isso, a perspectiva histórica associada às noções sociojurídicas apresentadas poderá levar, então, a um debate sobre o âmbito histórico de formação das raízes da estrutura familiar brasileira e suas consequências para a compreensão da formação histórica da sociedade hodierna e suas concepções acerca das configurações familiares.

Dessa maneira, é indispensável a compreensão de uma nova história familiar onde a pluralidade seja capaz de se estabelecer sem passar por históricos processos religiosos, políticos, jurídicos e sociais de abandono e discriminação.

Referências
Matheus Mendes Bomfim Marques é graduando em Direito pela Universidade Federal de Viçosa [UFV] e atualmente desenvolve e coordena pesquisas e projetos com foco nas áreas de Direitos Humanos e Ciência Política na América Latina, Cáucaso e Sudeste Africano, além de História, Hermenêutica e Filosofia Jurídica na perspectiva do Direito Comparado teuto-brasileiro. Ademais, é Resource Person da Cameroon Association of Active Youths [CAMAAY]; voluntário das Nações Unidas [UNV] e do Projeto de Extensão Tutelando Conselhos [TC]; e membro ativo da American Bar Association [ABA], Amnesty International [AMNESTY], American Planning Association [APA] e da Association for Women’s Rights in Development [AWID].

BARCA, Isabel. Educação Histórica: uma nova área de investigação. Revista da Faculdade de Letras do Porto, Porto, II série, v. 2, p. 13-21, 2001.
BARRETO, Luciano Silva. “Evolução histórica e legislativa da família” in Série Aperfeiçoamento de Magistrados– 10 Anos do Código Civil - Aplicação, Acertos, Desacertos e Novos Rumos, vol. 1, n.13, 2013.
BARTON, K. C.; LEVSTIK, L. S. Teaching History for the Common Good. New York: Routledge, 2004.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
BRASIL. Lei nº 883, de 21 de outubro de 1949. Dispõe sobre o reconhecimento de filhos ilegítimos. Rio de Janeiro, RJ, out 1949. Disponível me: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1930-1949/L0883.htm >. Acesso em: 12/02/2020.
BRASIL. Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/1950-1969/L4121.htm>. Acesso em: 12/02/2020.
BRASIL. Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977. Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento, seus efeitos e respectivos processos, e dá outras providências. Brasília, DF, dez 1977. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6515.htm>. Acesso em: 12/02/2020.
BRASIL. Resolução nº 175,  de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Brasília, DF, maio 2013. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2504 >. Acesso em: 12/02/2020.
MOTT, Luiz. “Anti-homossexualidade: a gênese da homofobia” in Revista de Estudos de Cultura: Aracaju, n. 02, Mai-Ago, p. 15-32, 2015.
POUZADOUX, Claude. Contos e lendas da mitologia grega. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTOS, Sheila Daniela Medeiros dos Santos. “Um novo olhar sobre o conceito de abandono de crianças” in Acta Scientiarum – Human and social Sciences: Maringá, v. 32, n. 1, pp. 63-72, 2010.
SCHETTINI, Suzana Sofia Moeller. Filhos por adoção: um estudo sobre o seu processo educativo em famílias com e sem filhos biológico. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2007. Dissertação de Mestrado.
SEIXAS, P.; WINEBURG, S.; STEARNS, P. History, Memory, Research and the Schools: the Pittsburg Conference, March 1999.
SOIFER, Raquel. Psicodinamismos da família com crianças: terapia familiar com técnica de jogo. Petrópolis: Vozes, 1982.
SOUSA, Mônica Teresa Costa; WAQUIM, Bruna Barbieri. Do direito de família ao direito das famílias – A repersonalização das relações familiares no Brasil in Revista de Informação Legislativa: Brasília [DF], v. 52, n. 205, Jan-Mar, 2015.

2 comentários:

  1. Olá, parabéns pelo estudo! Acho que o olhar para a família na qual se inserem os alunos é essencial para a educação em todas as disciplinas. O resgate da história do desenvolvimento das noções de família que você apresenta são muito importantes para entendermos a nossa sociedade. Minha pergunta é a seguinte: você conhece ou trabalha com o conceito de habitus, capitais e campos de Bourdieu? Esse autor trabalha na perspectiva da família como um campo de relações que formula determinado habitus. O habitus, basicamente, seria seria o senso prático do que se deve fazer em certa ocasião. Ele é produzido pelos condicionamentos sociais, pelos bens e propriedades do sujeito, ou seja, dependendo do seu
    capital econômico, cultural e espaço social. Acho que essa percepção poderia agregar na sua pesquisa, o que achas?

    Bárbara Birk de Mello

    ResponderExcluir
  2. Prezada Bárbara,

    Excelente ideia! Conheci o trabalho de Bourdieu no último ano, todavia, ainda não havia pensado sobre essa relação.
    Acredito que os condicionamentos sociais são realmente indispensáveis para a formação das definições de família que a sociedade possui e seus reflexos na esfera política e juridica, por exemplo. Além disso, o habitus da noção de família também teria variações (como de religião e ética) tendo em vista as diversas constituições de família e a pluralidade de pensamentos que o próprio convívio familiar proporciona sobre a aprendizagem histórica e suas interfaces.

    Att.

    Matheus Mendes Bomfim Marques

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.