QUE HISTÓRIA TEREMOS? VIRTUALIZAÇÃO, FRAGMENTAÇÃO E ACELERAÇÃO NA PERCEPÇÃO DA REALIDADE ENTRE OS JOVENS
A presente proposta de
trabalho se baseia na experiência docente dos autores, e no uso da sala de aula
como um espaço privilegiado para a observação das dinâmicas da sociedade.
Partimos da perspectiva de que as dinâmicas, muitas vezes sutis, que acontecem nas
salas de aula, podem ser usadas como indicativos de transformações sociais
vigentes ou em gestação. Ou seja, a sala de aula funciona como um reflexo da
sociedade, de modo que o que acontece na sala de aula, é condizente com o que
acontece na sociedade mais ampla. Desse modo, buscaremos defender a tese de que
houve uma considerável mudança na percepção da realidade entre os jovens nas
últimas duas décadas, decorrente de um mecanismo complexo, cujo núcleo
poderíamos chamar “desrealização” [JAPPE, 2013], que opera fortemente nos anos
iniciais do século XXI.
Assim, considerando a
sala de aula como um campo de interação/observação, queremos sustentar a
perspectiva de que ela reflete uma alteração na percepção da realidade e do
tempo histórico por parte das novas gerações. Lipovetsky [1989] afirma que cada
tempo histórico na trajetória da humanidade, pode ser caracterizado a partir de
um modelo perceptivo da realidade, defendendo o ponto de vista de que o momento
histórico atual tem essa marca de efêmero, passageiro, fugaz ..., o que nos
leva à um paralelo com a alegação de Bauman [2001] de que vivemos tempos
líquidos, onde parece que tudo tende ao inconsistente, ao transitório, ao
indeterminado.
Apurando seu
pensamento, Gilles Lipovetsky alega que é possível refletir cada momento
histórico numa trama mítica que parece dar conta de explicar sua lógica. Por
isso, segundo ele, o momento atual é um reflexo do mito de Narciso; esse
personagem que confunde realidade e virtualidade [seu reflexo na fonte d’agua],
e essa confusão/sedução lhe absorve de tal modo que mergulha em busca de seu
próprio reflexo ilusório e destrói sua existência. Ora, nos parece tentador
relacionar essa passagem concisa do mito com a situação que se observa nas
novas gerações, em sala de aula ou em qualquer outro lugar: parece haver ali
essa reedição da sedução da virtualidade, exigindo que saiam de si, que se
projetem hipnoticamente num campo de virtualidade que se exerce como um
domínio, puxando-os para fora de si, tirando-os do controle de suas próprias
vidas, erigindo-os, muitas vezes, como robôs biológicos que parecem não tender
a outra coisa que não a de servos da tecnologia, especialmente essa da
informação [LIMA, 2006]. Existe ali, nitidamente, como é nítido na história de
Narciso, uma renúncia da realidade, um desprezo pelo factual, à base de uma
afeição motivada por [im]pulsos emotivos daquilo que é pós-factual [post
factum]. Ou seja, parece que já não interessa mais a realidade [fato],
interessa mais uma interpretação que se cria sobre ela [post factum], floreado,
quase sempre, com as conotações aprazíveis à esse instinto da curiosidade
superficial, sem sossego, frenética na busca da última novidade da internet.
O que queremos
questionar aqui são as implicações desse fenômeno, sua lógica [se é que tem!],
sua estrutura, suas causas. Quando se olha em retrospectiva essas duas décadas
de trabalho docente que vivenciamos, tem-se a impressão de que quanto mais se
volta no tempo, mais parece nítida a existência de uma percepção mais estendida
no tempo histórico, que se expressava numa maior consciência do passado, do
presente e das projeções futuras. Por isso nos parecia frutífero no passado,
mais do que hoje, dialogar sobre acontecimentos históricos, para pensar o que
se vive no presente e o que se pode esperar do futuro. Hoje, a sensação que se
tem é de que parece impróprio visitar o passado, nem mesmo pensar sobre o
futuro parece devido; vive-se uma espécie de ditadura do instante [CIORAN,
2011], mas um instante deslocado, virtual, não vivido verdadeiramente,
flutuante na superficialidade do que poderia ser o real que nos escapa.
Todavia, precisamos
esclarecer aqui, que não nos pomos contra os avanços tecnológicos, apenas
buscamos questionar seus limites, suas armadilhas. Segundo Floriani [2002],
refletindo a partir do mito de Dédalo e Ícaro, percebe-se a tecnologia como uma
moeda de duas faces. Ou seja, há nas inovações tecnológicas, em especial essas
informacionais, uma possibilidade libertária, ligada ao aprimoramento das
condições do bem-viver, do conhecimento, da compreensão do mundo. Mas há seu
lado alienante, deformador, aniquilante, que impera necessariamente na medida
do mau uso da tecnologia, na medida da inobservância de seus limites, que
necessariamente existem enquanto invenções humanas.
Considerando isso,
duas conclusões podem ser imediatamente tiradas, quando se interpretam
criticamente as dinâmicas em sala de aula na atualidade. Primeiro, é que
estamos imersos num massivo processo de fragmentação social, marcado pela
virtualização das relações, apesar de existir uma interconexão virtual
crescente. Outra conclusão evidente é de que mudamos o modo de interagir com a
realidade, agora ela tende a nos chegar virtualmente.
Que impactos isso tem
para a novas gerações? Como esse mecanismo virtualizante, individualizante e
fragmentador impacta na percepção da duração histórica, na continuidade do
tempo histórico, encadeado como elos de uma corrente que se projeta do passado,
para o presente e o futuro O que significa essa era do efêmero [LIPOVETSKY,
1989], em que se deteriora o sentido duradouro das coisas, em que a própria
consistência e diferenciação da realidade parece diluir-se [BAUMAN, 2001], em
que tudo o que é sólido parece desmanchar-se no ar? [BERMAN, 2007].
As consequências desse
processo em sua abrangência não podem ser investigadas em profundidade no
contexto desse trabalho. Todavia, alguns sintomas desse mal-estar na
civilização, parafraseando Freud [2010], podem ser apontados. É evidente os
elevados índices de problemas psíquicos entre os estudantes. Nos contextos
educacionais, mesmo em nível infantil, médio ou superior, é frequente a
preocupação com a saúde psíquica das novas gerações [CID e outros, 2019]. Duas
questões podem ser postas aqui: primeiro, que isso é, novamente, um indicativo
de problema social mais amplo, generalizado, podemos dizer. Depois, que apesar
dos sinceros e bem-vindos esforços, esse problema simplesmente não pode ser
satisfatoriamente resolvido se não se considerar que o ambiente educacional
funciona como uma espécie de espaço de revelação ou manifestação de disfunções
gerais mais amplas da sociedade do consumo. Ou seja, a escola parece ser como a
ponta de um iceberg em que os problemas humanos e sociais se manifestam, se
desnudam.
Como se isso não
bastasse, temos outro problema que é genuinamente filosófico: a questão do
tempo. Se fossemos questionar qualquer cidadão hoje inserido na agitação de uma
grande cidade [mas não só], e lhe questionássemos acerca da percepção do ritmo
temporal, ou da cadência do tempo, é certo que quase todos apontariam para o
fenômeno da aceleração temporal. Ou seja, alegariam que falta tempo, que tudo é
rápido, como se a própria realidade do viver fosse, cada vez mais, uma
precipitação de acontecimentos muitas vezes inconclusos, provisórios,
apressados, mal feitos [LIPOVETSKY, 2016]. Será isso ilusão, ou será isso real?
E o que o fenômeno da aceleração temporal tem a ver com o que Jappe [2013]
chama de “desrealização”?
Um aspecto
interessante que se pode observar na questão da percepção da cadência do tempo,
é que isso reflete, enormemente, no modo como encaramos o processo do viver. Ou
seja, a sensação de que o tempo está passando rápido impacta, necessariamente,
na percepção de como devo viver. Isso quer dizer que quando sinto que o tempo
passa rápido, isso inevitavelmente reverbera numa sensação urgente de que devo
agir apressadamente, com destreza, sem perda de tempo, cortando pormenores
improdutivos, sendo objetivo no que vou fazer e assim por diante.
Voltando à observação
das vivências em sala de aula, parece-nos nítida a sensação de que as novas
gerações estão cada vez menos dispostas a enfrentar o que se poderia chamar
processos construtivos. Ou seja, aceitar e assumir a perspectiva de que a
própria vida é um processo nem sempre fácil, trabalhoso, difícil, frustrante...,
mas no final das contas compensador. É nesse sentido que parece existir cada
vez menos paciência para se ler um livro, para ler um pequeno texto mais que
uma vez, para revisar um conteúdo para melhor compreendê-lo. Predomina, cada
vez mais, a ideia de que tudo deve ser rápido, prático, objetivo, simplificado
... ainda que isso signifique, muitas vezes, o corte dos aspectos mais sutis e
interessantes da própria existência, como é o processo de construção do
conhecimento [para o conhecimento nenhum sacrifício é grande demais, dizia
Michel Foucault!].
O que pode ser
colocado aqui é que esse fenômeno de desconstrução das bases simbólicas e
psíquicas da humanidade acarreta, em última instância, a geração de uma
inabilidade para viver. Ou seja, esse processo todo do desenvolvimento de uma
sociedade do consumo e da concorrência em todos os níveis, relega a própria
humanidade à uma situação de vulnerabilidade no enfrentamento dos desafios da
própria vida que, sub-repticiamente, se intensificam com o aprimoramento dessa
mesma sociedade. Aparece aqui, novamente, a ideia do capitalismo como
autofágico, como o pior inimigo de si mesmo!
A
“Desrealização”
Anselm Jappe [2013, p.
96] defende a seguinte tese:
“O capitalismo
contemporâneo não é somente essa injustiça econômica que sempre se mantém no
centro dos debates; e nem a catástrofe ecológica causada por ele consegue
fechar a lista de seus danos. O capitalismo é igualmente um desmonte – uma
‘desconstrução’ – das bases simbólicas e psíquicas da cultura humana, visível
principalmente na desrealização operada pelas mídias eletrônicas”. Ou seja,
isso aponta para o fato de que o problema central do capitalismo, seu centro
nevrálgico, consiste numa espécie de confinamento geral que opera
principalmente pelas mídias sociais, e que reduz ou subordina o ser humano aos
ditames de uma fetichização existencial, consistente à essa lógica restrita e
filosoficamente pobre que é o mecanismo de produção, circulação e consumo de
mercadorias no capitalismo atual. Parece ser nesse sentido que tudo tende a ser
subsumido pela lógica restrita do capitalismo; tudo tende a ser colonizado pelo
mercado, como dizia Habermas [2014]. Com a escola não é diferente, no
capitalismo ela tende a ser cada vez mais instrumentalizada no sentido da
construção material e simbólica para a própria vigência do capitalismo, cada
vez mais voraz, autofágico, destrutivo.
Assim, o problema
parece não ser tão simples: esse fetichismo parece não ser simplesmente um
conjunto de falsas representações da realidade, num sentido ideológico e
alienante como propusera Marx. O que emerge aqui é que temos uma estrutura, um
formato de vida que se vive no capitalismo, algo como uma estrutura fetichizada
da existência; ou seja, a própria forma da existência no capitalismo parece ser
um fetiche. Nesse sentido, o fetichismo como conceito parece implicar,
atualmente, a existência de uma estrutura civilizacional fetichizada, cuja
ponta de lança, na argumentação de Jappe [2013], são as mídias sociais que
operam essa “desrealização” da realidade, algo como uma virtualização ideologizada
do real.
Qual o significado
dessa “desconstrução das bases simbólicas e psíquicas da cultura humana,
visível principalmente na desrealização operada pelas mídias eletrônicas”
[JAPPE, 2013, p. 96]? Qual a amplitude dessa alegação e o que seriam essas bases
simbólicas e psíquicas da cultura humana? Conjecturamos a hipótese de que
estamos aqui diante de um processo colossal e de múltiplas dimensões. Como o
próprio Gilles Lipovetsky sugere em sua obra, pode-se questionar acerca do
papel dos mitos atualmente, bem como todo um conjunto de representações
simbólicas que através dos milênios tem estruturado o fazer-se humano. O que se
pode dizer é que parece estar em operação um mecanismo que metamorfoseia toda
essa riqueza cultural e simbólica da história humana num simples insumo para o
desenvolvimento da sociedade do capital e do consumo. Seria nesse sentido,
possivelmente, o que se pode entender por “desrealização”.
Considerações
finais
O mecanismo
operacional da “desrealização” parece implicar, principalmente, o que se
constata imediatamente com um diálogo numa sala de aula: a virtualização,
fragmentação e aceleração na percepção da realidade entre os jovens. Esses três
fenômenos parecem ser, de fato, os sintomas do mal-estar civilizacional da
sociedade pós-moderna. E eles são visíveis com uma nitidez incomum na sala de
aula, quando se verifica essa tendência de acesso virtual da realidade, quando
se constitui uma visão fragmentada ou desconexa da realidade, e quando se
conjuga isso à percepção da aceleração temporal. Consideramos esse, portanto,
como um problema que precisa ser enfrentado, no sentido de uma reconstituição
da visão de mundo, de uma reconstrução do horizonte utópico para as novas
gerações.
É possível que esse
desafio da reconstrução das condições do bem viver para toda civilização, e em
especial para as novas gerações, dependa da restauração de elementos que sempre
foram básicos para a convivialidade humana, tais como diálogo, atenção,
tolerância, concentração e paciência. Esse parece ser um ponto importante, na
medida em que essa crise civilizacional que estamos passando inibe, exatamente,
a predisposição ou capacidade para o básico, para o óbvio. É assim que,
curiosamente, a humanidade parece perder a capacidade de afazeres elementares
como alimentação correta, hábitos saudáveis, disciplina e etc. Enfim, o grande
paradoxo de nossa época, desses tempos hipermodernos [LIPOVETSKY, 2004, 2017],
reside, justamente, nessa necessidade de depuração, de “assepsia vivencial”,
retirando os excessos e [re]tornando à vida simples como sempre deveria ser.
Referências
Everton Marcos
Batistela é Licenciado em Filosofia, Mestre e Doutor em Sociologia pela UFPR e
Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná [UTFPR].
Manoel Adir Kischener
é Bacharel e Licenciado em História, Mestre em Desenvolvimento Regional e
Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá [UEM].
BAUMAN, Zigmunt.
Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BERMAN, Marshall. Todo
Que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
CID, Maria Fernanda
Barbosa e outros. Saúde Mental Infantil e Contexto Escolar. Pró-Posições.
Campinas, V. 30, 2019.
CIORAN, Emil. História
e Utopia. São Paulo, Rocco, 2011.
FLORIANI, Dimas e
outros. Para Filosofar. Curitiba: Scipione, 2002.
FREUD, Sigmunt. O
Mal-estar Na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HABERMAS, Jurgen.
Técnica e Ciência como Ideologia. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
JAPPE, Anselm. Crédito
à Morte: a Decomposição do Capitalismo e Suas Críticas. São Paulo: Hedra, 2013.
LIMA, Nádia Laguárdia
de. O Fascínio e a Alienação no Ciberespaço: uma perspectiva psicanalítica.
Arquivos Brasileiros de Psicologia [versão on-line], V. 58, N. 2, Rio de
Janeiro, dez. de 2006.
LIPOVETSKY, Gilles. A
Felicidade Paradoxal: Ensaio Sobre a Sociedade de Hiperconsumo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
LIPOVETSKY, Gilles. Da
Leveza: Para Uma Sociedade do Ligeiro. Lisboa: Edições 70, 2016
LIPOVETSKY, Gilles. Os
Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.
LIPOVETSKY, Gilles. O
Império do Efêmero. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
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ResponderExcluirParabéns pelo ótimo texto Everton e Manoel!
ResponderExcluirA nossa juventude vem passando por uma série de metamorfoses. Onde procuramos inovar ou adaptar-se a situações ou momentos de total transformação em que se encontra. Numa sociedade, que exige grandes esforços para se manter dentro de um patamar padrão que nos obriga a executar.
Hoje em dia, eles enfrentam muitas coisas: desigualdade social, desigualdade racial, informações inadequadas e etc. Com a tecnologia se teve avanços na comunicação, a internet serve de exemplo a facilidade de que temos para várias coisas. Entretanto, jovens não tem muito discernimento para extrair o melhor, logo, acaba afastando a convivência entre eles (fisicamente), deixando de lado o principal que é o básico como: convivência, atenção, tolerância, concentração e paciência.
MANOEL ADIR KISCHENER
ExcluirAgradecido, Sr. Pedro Henrique Klauser Siqueira!
Em relação ao que escreve, concordo, e quanto ao fato de os “[...] jovens não tem muito discernimento para extrair o melhor” das tecnologias expõe um dilema, a meu ver, geracional; enquanto estes jovens (uma geração digital e, estritamente visual) são mais próximos e dispõe de maior facilidade e adesão, nós, os professores, de uma geração ainda analógica (se for pensar na própria resistência dos professores em aderir a ferramentas tecnológicas em suas aulas) resistimos e, o descompasso segue, impondo desafios cotidianos à docência. Precisamos, nesse sentido, de certa forma, nos reinventar, mas não sem a crítica ao uso desmedido – e, de certa forma como sendo fetiche e, mais lúdico do que enquanto ferramenta – da tecnologia.
Abraços!
EVERTON MARCOS BATISTELA
ExcluirPedro, obrigado pelo comentário!
Realmente a questão das tecnologias da informação e as novas gerações possuem o significado de nos remeter à questões bem mais profundas, como as múltiplas problemáticas sociais e suas derivações, que afetam diretamente os jovens. Vivemos tempos incertos, não se sabe muito bem como será o futuro, nem se teremos futuro; e essa incerteza afeta diretamente os jovens. Certamente não se trata de abolir essas tecnologias da informação, mas transformá-las em instrumentos de conscientização e pensamento crítico. Esse é um dos grandes desafios para quem trabalha com educação, ou seja, transformar esses novos recursos que tem um grande potencial alienador, em instrumento conscientizador.