ROTEIROS PEDAGÓGICOS: O ENSINO DE HISTÓRIA ENTRE A MATERIALIDADE E A IMAGINAÇÃO
Aulas de campo são
momentos especiais na relação ensino-aprendizagem. Os processos que envolvem o
ato de educar e aprender dependem sobremaneira da disposição dos sujeitos
envolvidos, isto é, da vontade de saber, que permeia não só alunos, mas
sobretudo professores. Cercados por uma realidade de aceleração do tempo, o
exercício da reflexão e da construção coletiva de saberes torna-se um desafio
ainda maior. Todavia, dizem os sábios que “mar calmo nunca fez bom marinheiro”,
o que nos impele a luta por uma educação emancipadora, ainda que em condições
adversas.
Como professores,
nossa visão do mundo tem impactos sensíveis na formação dos nossos alunos.
Interferimos como agentes, dentre outros bem mais potentes, nas suas educações
e disposição para olhar além da superfície. Na disciplina por nós ministrada, a
História, os olhares dos alunos sobre o mundo são ainda mais afetados pelas vivências
da sala de aula e, porque não dizer, para além dos muros da escola. Acostumados
e formados na Universidade para o trabalho com documentos, torna-se cômoda a
pesquisa e desenvolvimento de metodologias de ensino baseadas em cartas,
ofícios, jornais e outros impressos, um professor que trabalha com imagens ou
linguagens audiovisuais já venceu alguns obstáculos. Então o que esperar quando
projetamos o uso pedagógico do patrimônio? Algumas pistas podem ser localizadas
na obra de Maria de Lourdes Horta [1999, p.06], que afirmou que:
“O processo educativo,
em qualquer área de ensino/aprendizagem tem como objetivo levar os alunos a
utilizarem suas capacidades intelectuais para aquisição de conceitos e
habilidades, assim como para o uso desses conceitos e habilidades na prática,
em sua vida diária e no próprio processo educacional. A aquisição é reforçada
pelo uso dos conceitos e habilidades, e o uso leva à aquisição de novas
habilidades e conceitos”.
Pelas palavras da
autora podemos refletir sobre a potência educativa do trabalho patrimonial,
especialmente, pelas habilidades e competências particulares ao espaço
educativo não formal ou informal. Levar um aluno ao museu, a um centro
cultural, à biblioteca, ao arquivo ou à rua é uma prática deveras desafiadora.
O primeiro desafio está depositado sobre o professor, responsável por articular
o currículo e as competências que pretende desenvolver com esses espaços. Um
sujeito tensionado socialmente e, em geral, sobrecarregado. O segundo desafio é
de ordem física, tendo em vista os obstáculos, não raro encontrados nas escolas
para atividades externas com os alunos, seja por motivos financeiros ou pela
distância de bens patrimoniais. O terceiro desafio é a identificação do
patrimônio, ou seja, a visão da escola e do professor sobre o que merece ser
visto, que lugares contam a história que lhes interessa. Lembrando que as
visões da instituição e do docente podem ser antagônicas, o que também
dificulta o processo. O quarto desafio é o olhar do aluno, que acostumado a ter
um ambiente cercado e reconhecido como pedagógico, se vê lançado a outros
espaços, que sem a devida preparação perderão seus potenciais de ensino. Apesar
dos entraves, que superam os aqui enumerados, a prática da educação patrimonial
tem ganhos que superam as expectativas curriculares.
O trabalho de campo é
capaz de suscitar no aluno olhares renovados sobre o mundo. A educação
patrimonial é afetiva, sensível e meticulosa, prescinde de tempo, deve estar
aberta ao novo, porque cada olhar é uma nova narrativa. A elaboração dos
discursos a partir do patrimônio resulta dos conceitos espontâneos dos
sujeitos, e das condições nas quais o patrimônio lhes é apresentado.
Consideramos essencial que os alunos estejam cientes da intencionalidade do
patrimônio, fruto de uma seleção, que faz da memória filha do esquecimento.
Mário Chagas [2013, p.30] assegura que:
“É desejável abolir
toda e qualquer ingenuidade em relação ao museu, ao patrimônio e à educação. Ao
lado dessa abolição é desejável desenvolver uma perspectiva crítica,
interessada em investigar ao serviço de quem estão sendo acionados: a memória,
o patrimônio, a educação e o museu. É preciso saber que o museu, o patrimônio,
a memória e a educação tiranizam, aprisionam, acorrentam e escravizam os
olhares incautos e ingênuos. É preciso coragem para pensar e agir a favor,
contra e apesar do museu, do patrimônio, da memória e da educação”.
Cientes dos desafios e
benefícios do trabalho desenvolvido a partir de bens patrimoniais, propomos, ao
leitor/professor, parte de um roteiro elaborado por alunos do PROFHISTÓRIA-RJ,
em 2019. Nossa proposta pode ser adaptada a outros museus, centros culturais e
espaços urbanos. O roteiro inicial foi elaborado a partir do tema Cidadania, e
de uma exposição do Museu da República - Gabinete Republicano de Histórias, a
qual propunha uma leitura musealizada da trajetória do Brasil República
[1889-2018]. O enfoque da exposição e do roteiro reside na leitura dos objetos,
o que dispara nosso primeiro desafio: o uso de objetos como fontes de saberes
históricos, ou seja, a compreensão do objeto como documento, e não como
monumento. Pode ser angustiante, nas visitas feitas aos museus, observar os
visitantes se demorarem tantas horas buscando ler todos os textos explicativos
em cada sala, deixando a observação dos objetos em segundo plano, como uma
espécie de ilustração da narrativa escrita. Contudo, o movimento do olhar em
busca de informações escritas é compreensível, tendo em vista a tradição
logocêntrica, que marca nossa formação escolar.
O exercício do olhar
depende da exploração e observação dos objetos que circundam nosso cotidiano.
Antes da realização de uma atividade pedagógica em um museu, é aconselhável que
o aluno seja sensibilizado, ato que se torna mais factível quando exercido
através da materialidade comum aos alunos. Se a percepção sobre os objetos
cotidianos for apurada, a abrangência da educação em museus será
potencializada.
É fundamental partir
do mundo vivido, construindo novas leituras sobre objetos comuns. A
historiadora Circe Bittencourt [2011, p.358] destaca a relevância do incentivo
ao espírito investigativo nos alunos, fazendo-os assumir uma postura analítica
diante dos objetos, que lhes permita estabelecer “comparações, notar diferenças
e semelhanças entre os objetos e suas formas, fazer analogias, sugerir
hipóteses sobre seu uso ou sobre técnicas de fabricação”. Estes processos
demandam um ensino pautado nos alicerces do diálogo, no qual o professor esteja
disposto a aprender com o aluno e, apesar das dificuldades que atravessam seu
ofício.
O roteiro desenvolvido
teve como ponto de partida a organização de seis planos de aula, sendo: quatro
dedicadas a preparação, um para a realização da aula de campo e um para atividades
decorrentes da visita. Conforme o explicitado anteriormente, o cerne do
trabalho era o conceito de cidadania. Aconselhamos que ao tomarem esta
experiência como exemplo, determinem que conceitos desejam trabalhar com seus
alunos e quais habilidades querem estimular. A especificação dos objetivos
pessoais do trabalho constitui a espinha dorsal de aulas de campo. Nosso
roteiro foi construído para aplicação no 9° ano do Ensino Fundamental, seguindo
as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular [BNCC], que propõe em História
“discutir o papel da mobilização da sociedade brasileira do final do período
ditatorial até a Constituição de 1988” [EF09HI22], “identificar direitos civis,
políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção
de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de
preconceito, como o racismo” [EF09HI23], “analisar as transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais de 1989 aos dias atuais, identificando questões
prioritárias para a promoção da cidadania e dos valores democráticos”
[EF09HI24], “relacionar as transformações da sociedade brasileira aos
protagonismos da sociedade civil após 1989” [EF09HI25] e “discutir e analisar
as causas da violência contra populações marginalizadas [negros, indígenas,
mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.] com vistas à tomada de
consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às
pessoas” [EF09HI26]. Todas as habilidades indicadas pelo documento podem ser
desenvolvidas ao longo da aplicação do roteiro, em conjunto com as aulas
ministradas na escola.
Tendo o tema e os
objetivos escolhidos, pesquise possíveis exposições ou espaços urbanos onde o
trabalho possa ser realizado. O conhecimento prévio do professor é essencial.
No caso dos museus, as instituições filiadas ao Instituto Brasileiro de Museus
[IBRAM] possuem núcleos educativos e páginas na internet, que podem esclarecer
dúvidas. Como professores devemos selecionar quais exposições gostaríamos de
utilizar, uma vez que a maioria dos museus abrange recortes temporais amplos, o
que esvazia o sentido do roteiro. Nossa proposta é que alunos e professores
aprendam durante a visita, sendo assim, superamos a utilização ilustrativa de
espaços educativos não formais. O museu como um templo, um observatório de
passados imutáveis e fechados a questionamentos, é o melhor lugar para
estimular o espírito crítico e o desenvolvimento de competências e habilidades
nos nossos alunos? Nossa resposta é não. Desse posicionamento, surgiu a
necessidade de construir um roteiro que dê ao museu status de fórum, um espaço
de construção coletiva de narrativas e sensações.
Durante as aulas
preparatórias a turma deverá ser dividida em grupos. Cada um deles será
responsável por um tema, a ser desenvolvido no espaço de educação não formal.
Nosso roteiro propôs uma divisão da turma em cinco grupos, a partir do Art. 5º
da Constituição Federal, a saber: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade. Todo o artigo deveria ter sido previamente discutido
com a turma e atividades de pesquisa devem ter sido realizadas. Solicitamos,
ainda na escola, que cada grupo escolhesse uma cor, usando como critério a cor
com a qual pensam no direito pelo qual são responsáveis. Apresentaremos a
seguir o texto que compõe o roteiro aplicado, como exemplo de trabalho a ser
desenvolvido.
I. Dinâmica inicial –
Direitos e violações à olho nu. [20 minutos]
Posicione a turma na
entrada principal do Museu da República, na Rua do Catete, lembrando-os de que
a partir daquele momento a atividade pedagógica da turma foi iniciada. Indique
que vocês estão na entrada do museu e peça que seus alunos observem o entorno,
ou seja, lojas, pessoas, fachadas, transportes, animais, propagandas, etc.
Absolutamente, tudo que estiver ao alcance dos olhos. Em seguida, faça algumas
perguntas para a turma:
• O que vocês viram?
• Como se sentiram?
• Que direitos foram
contemplados?
• Que direitos foram
violados?
• As situações
observadas são parecidas com as do bairro de origem da turma?
O objetivo é aguçar o
olhar dos seus alunos, fazendo-os perceberem que tudo que os circunda é
importante para a atividade e, sobretudo, que os direitos e suas violações
estão em toda parte.
II. O Salão
Ministerial [30 minutos]
Leve os alunos para o
interior do museu, encaminhando-os diretamente para o Salão Ministerial. Deixe
que a turma circule um pouco pelo ambiente, depois reúna-os perto da mesa e
apresente as principais obras e aspectos do espaço. Explique as funções da sala
ao longo do tempo, indicando marcas temporais de sedimentação da memória
através da arquitetura, mostrando peculiaridades nas paredes e teto. Peça que
os alunos observem o quadro Compromisso Constitucional. Pergunte:
• O que eles acham que
está representado no quadro?
• O que mais chamou
atenção deles na pintura?
• Que personagens têm
centralidade na tela e quais estão em menor número?
• Por que os
personagens estão dispostos assim?
Imagem 1: Compromisso
Constitucional. Óleo s/tela, Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, 1896.
[MUSEU DA REPÚBLICA].
Deixe que seus alunos
observem a mesa e as pastas ministeriais, questione o grupo sobre as
prioridades do governo, tomando como ponto de partida os títulos dos
ministérios. Estimule a comparação com os ministérios e assuntos em destaque na
atualidade. Finalmente, pergunte se o grupo ainda tem alguma dúvida,
sinalizando o próximo passo do roteiro, a exposição Gabinete republicano de
histórias controversas, não ditas e mal ditas.
III. Quando os objetos
contam a história [50 min]
Leve a turma até a
entrada da exposição, explicando a intencionalidade de sua criação, para isso,
é possível utilizar o texto introdutório da primeira sala expositiva como fio
condutor. Em seguida, leia para os alunos o cordel produzido pela professora-poeta
alagoana Marlene Ramos, intitulado - Cidadania.
Após a leitura,
questione se os alunos têm algum comentário a fazer sobre o cordel,
esclarecendo qualquer questionamento. Entregue a cada um dos alunos uma fita,
da cor escolhida por eles na escola para representar o grupo, junto a um
alfinete, para que eles coloquem na blusa. Com os grupos divididos e
identificados, ofereça uma ficha, que contenha as orientações pertinentes.
Conforme os exemplos, abaixo:
Imagem 2: Ficha
desenvolvida pelas autoras do trabalho.
Imagem 3: Ficha
desenvolvida pelas autoras do trabalho.
Imagem 4: Ficha
desenvolvida pelas autoras do trabalho.
Conforme o
explicitado, anteriormente, as fichas são exemplos. O professor pode selecionar
outros objetos para o seu trabalho, desde que forneça as imagens para os
alunos, para fins de localização e pesquisa. Explique para os alunos que eles
terão 40 minutos para circularem pelas salas da exposição. Deixe que conversem,
fotografem e perguntem o que quiserem. Evite guiar os alunos dentro das salas,
observe-os sem interferências desnecessárias, permita que eles se encantem ou
surpreendam com a exposição.
IV. Mediação em foco
[50 minutos]
Este é o momento de
protagonismo dos alunos. Reúna os grupos, pedindo que cada um deles faça a sua
apresentação. Destaque que eles podem fazer perguntas uns aos outros, da mesma
forma que puderam interagir com você no Salão Ministerial. Cada grupo deverá
ter no máximo 10 minutos para fazer a sua apresentação.
Esperamos que o
roteiro auxilie positivamente seu trabalho. Destacamos a necessidade de
levantar boas questões, utilizar o deslumbramento com a monumentalidade para
salientar aspectos menos aparentes e estar aberto para ouvir o que os alunos
têm a dizer. Não existe uma resposta correta, os alunos serão tocados pela
exposição ou cidade de formas variadas. Podem surgir emoções inesperadas
[espanto, encantamento, surpresa, revolta, curiosidade, afeto, alegria,
tristeza], nenhuma delas é errada. Vocês estão em um ambiente de afetação dos sentidos,
deixar-se afetar faz parte do exercício de conhecer e aprender com a
materialidade.
Na proposta
apresentada ao longo desse trabalho utilizamos o Museu da República como lugar
onde os testemunhos materiais do passado podem ser observados pelos alunos.
Mais do que a contemplação, propomos a articulação de saberes escolares e
museais para o desenvolvimento de competências históricas. O aluno torna-se
sujeito de sua aprendizagem, assumindo uma postura ativa na construção de seu
conhecimento e narrativa, sendo mediado pelo professor, que atua como um
facilitador dentro do museu. Como professor, o leitor pode utilizar as fichas
como inspiração para propor outros problemas e temas aos seus alunos.
Desejamos oferecer aos
estudantes uma oportunidade de ver os objetos para além de sua materialidade,
refletindo sobre seu caráter simbólico e, questionando a fetichização da
materialidade expositiva. Se “educar é garantir ao indivíduo condições para que
ele continue a educar-se” [MENESES, 2000, p.94] enxergamos no roteiro proposto
um caminho frutífero para educação e ensino de história, uma vez que não
construímos uma proposta que fala sobre os objetos, mas que explora a
materialidade como disparadora de narrativas a partir dos objetos.
Referências
Me. Priscila Lopes
d’Avila Borges é doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana.
Atualmente, desenvolve pesquisas na área do Ensino de História e Educação
Museal, fomentadas pela FAPERJ.
Me. Thaísa Muniz atua
como professora de História e realiza pesquisas no campo do Ensino de História
em espaços não-formais.
BITTENCOURT, Circe
Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez,
2011.
BRASIL. Constituição
[1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado
Federal: Centro Gráfico, 1988.
CHAGAS, Mário de
Souza. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In:
TOLENTINO, Átila Bezerra [Org.]. Educação patrimonial: educação, memórias e
identidades. João Pessoa: Iphan, 2013.
HORTA, Maria de
Lourdes Parreiras et al. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília:
IPHAN/Museu Imperial, 1999.
MEC. Base Nacional
Comum Curricular.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf.
Acesso em 24 de janeiro de 2020.
MENESES, Ulpiano T.
Bezerra de. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões. In: Ciência e Letras,
n. 27, 2000.
MUSEU DA REPÚBLICA,
http://www.museudarepublica.gov.br, Acesso em 18 de janeiro de 2020.
PARABÉNS PELO TEXTO! AO DEFENDER A SENSIBILIZAÇÃO PRÉVIA DOS ALUNOS, VOCÊS INDICAM ALGUM TIPO ESPECÍFICO DE OBJETOS OU MÉTODO?
ResponderExcluirAss: LUAN DE S.BATISTA
Bom dia Luan. Obrigada pelo elogio! Defendemos que os professores utilizem objetos que tenham relação com a realidade dos alunos. Se você partir de um objeto que pertença ao mundo material do aluno, o referencial dele será mais forte, e você terá mais chances de sucesso. Quanto ao método, separe um tempo apenas para essa provocação inicial, e garanta que seus alunos saibam o que vão fazer no museu e tenham uma ideia do que podem encontrar por lá. Isso ajuda na localização prévia deles, e torna a atividade mais produtiva.
ExcluirPriscila Lopes d'Avila Borges