Priscila Lopes d’Avila Borges e Thaísa Muniz


ROTEIROS PEDAGÓGICOS: O ENSINO DE HISTÓRIA ENTRE A MATERIALIDADE E A IMAGINAÇÃO




Aulas de campo são momentos especiais na relação ensino-aprendizagem. Os processos que envolvem o ato de educar e aprender dependem sobremaneira da disposição dos sujeitos envolvidos, isto é, da vontade de saber, que permeia não só alunos, mas sobretudo professores. Cercados por uma realidade de aceleração do tempo, o exercício da reflexão e da construção coletiva de saberes torna-se um desafio ainda maior. Todavia, dizem os sábios que “mar calmo nunca fez bom marinheiro”, o que nos impele a luta por uma educação emancipadora, ainda que em condições adversas.

Como professores, nossa visão do mundo tem impactos sensíveis na formação dos nossos alunos. Interferimos como agentes, dentre outros bem mais potentes, nas suas educações e disposição para olhar além da superfície. Na disciplina por nós ministrada, a História, os olhares dos alunos sobre o mundo são ainda mais afetados pelas vivências da sala de aula e, porque não dizer, para além dos muros da escola. Acostumados e formados na Universidade para o trabalho com documentos, torna-se cômoda a pesquisa e desenvolvimento de metodologias de ensino baseadas em cartas, ofícios, jornais e outros impressos, um professor que trabalha com imagens ou linguagens audiovisuais já venceu alguns obstáculos. Então o que esperar quando projetamos o uso pedagógico do patrimônio? Algumas pistas podem ser localizadas na obra de Maria de Lourdes Horta [1999, p.06], que afirmou que:

“O processo educativo, em qualquer área de ensino/aprendizagem tem como objetivo levar os alunos a utilizarem suas capacidades intelectuais para aquisição de conceitos e habilidades, assim como para o uso desses conceitos e habilidades na prática, em sua vida diária e no próprio processo educacional. A aquisição é reforçada pelo uso dos conceitos e habilidades, e o uso leva à aquisição de novas habilidades e conceitos”.

Pelas palavras da autora podemos refletir sobre a potência educativa do trabalho patrimonial, especialmente, pelas habilidades e competências particulares ao espaço educativo não formal ou informal. Levar um aluno ao museu, a um centro cultural, à biblioteca, ao arquivo ou à rua é uma prática deveras desafiadora. O primeiro desafio está depositado sobre o professor, responsável por articular o currículo e as competências que pretende desenvolver com esses espaços. Um sujeito tensionado socialmente e, em geral, sobrecarregado. O segundo desafio é de ordem física, tendo em vista os obstáculos, não raro encontrados nas escolas para atividades externas com os alunos, seja por motivos financeiros ou pela distância de bens patrimoniais. O terceiro desafio é a identificação do patrimônio, ou seja, a visão da escola e do professor sobre o que merece ser visto, que lugares contam a história que lhes interessa. Lembrando que as visões da instituição e do docente podem ser antagônicas, o que também dificulta o processo. O quarto desafio é o olhar do aluno, que acostumado a ter um ambiente cercado e reconhecido como pedagógico, se vê lançado a outros espaços, que sem a devida preparação perderão seus potenciais de ensino. Apesar dos entraves, que superam os aqui enumerados, a prática da educação patrimonial tem ganhos que superam as expectativas curriculares.

O trabalho de campo é capaz de suscitar no aluno olhares renovados sobre o mundo. A educação patrimonial é afetiva, sensível e meticulosa, prescinde de tempo, deve estar aberta ao novo, porque cada olhar é uma nova narrativa. A elaboração dos discursos a partir do patrimônio resulta dos conceitos espontâneos dos sujeitos, e das condições nas quais o patrimônio lhes é apresentado. Consideramos essencial que os alunos estejam cientes da intencionalidade do patrimônio, fruto de uma seleção, que faz da memória filha do esquecimento. Mário Chagas [2013, p.30] assegura que:

“É desejável abolir toda e qualquer ingenuidade em relação ao museu, ao patrimônio e à educação. Ao lado dessa abolição é desejável desenvolver uma perspectiva crítica, interessada em investigar ao serviço de quem estão sendo acionados: a memória, o patrimônio, a educação e o museu. É preciso saber que o museu, o patrimônio, a memória e a educação tiranizam, aprisionam, acorrentam e escravizam os olhares incautos e ingênuos. É preciso coragem para pensar e agir a favor, contra e apesar do museu, do patrimônio, da memória e da educação”.

Cientes dos desafios e benefícios do trabalho desenvolvido a partir de bens patrimoniais, propomos, ao leitor/professor, parte de um roteiro elaborado por alunos do PROFHISTÓRIA-RJ, em 2019. Nossa proposta pode ser adaptada a outros museus, centros culturais e espaços urbanos. O roteiro inicial foi elaborado a partir do tema Cidadania, e de uma exposição do Museu da República - Gabinete Republicano de Histórias, a qual propunha uma leitura musealizada da trajetória do Brasil República [1889-2018]. O enfoque da exposição e do roteiro reside na leitura dos objetos, o que dispara nosso primeiro desafio: o uso de objetos como fontes de saberes históricos, ou seja, a compreensão do objeto como documento, e não como monumento. Pode ser angustiante, nas visitas feitas aos museus, observar os visitantes se demorarem tantas horas buscando ler todos os textos explicativos em cada sala, deixando a observação dos objetos em segundo plano, como uma espécie de ilustração da narrativa escrita. Contudo, o movimento do olhar em busca de informações escritas é compreensível, tendo em vista a tradição logocêntrica, que marca nossa formação escolar.

O exercício do olhar depende da exploração e observação dos objetos que circundam nosso cotidiano. Antes da realização de uma atividade pedagógica em um museu, é aconselhável que o aluno seja sensibilizado, ato que se torna mais factível quando exercido através da materialidade comum aos alunos. Se a percepção sobre os objetos cotidianos for apurada, a abrangência da educação em museus será potencializada.

É fundamental partir do mundo vivido, construindo novas leituras sobre objetos comuns. A historiadora Circe Bittencourt [2011, p.358] destaca a relevância do incentivo ao espírito investigativo nos alunos, fazendo-os assumir uma postura analítica diante dos objetos, que lhes permita estabelecer “comparações, notar diferenças e semelhanças entre os objetos e suas formas, fazer analogias, sugerir hipóteses sobre seu uso ou sobre técnicas de fabricação”. Estes processos demandam um ensino pautado nos alicerces do diálogo, no qual o professor esteja disposto a aprender com o aluno e, apesar das dificuldades que atravessam seu ofício.

O roteiro desenvolvido teve como ponto de partida a organização de seis planos de aula, sendo: quatro dedicadas a preparação, um para a realização da aula de campo e um para atividades decorrentes da visita. Conforme o explicitado anteriormente, o cerne do trabalho era o conceito de cidadania. Aconselhamos que ao tomarem esta experiência como exemplo, determinem que conceitos desejam trabalhar com seus alunos e quais habilidades querem estimular. A especificação dos objetivos pessoais do trabalho constitui a espinha dorsal de aulas de campo. Nosso roteiro foi construído para aplicação no 9° ano do Ensino Fundamental, seguindo as diretrizes da Base Nacional Comum Curricular [BNCC], que propõe em História “discutir o papel da mobilização da sociedade brasileira do final do período ditatorial até a Constituição de 1988” [EF09HI22], “identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo” [EF09HI23], “analisar as transformações políticas, econômicas, sociais e culturais de 1989 aos dias atuais, identificando questões prioritárias para a promoção da cidadania e dos valores democráticos” [EF09HI24], “relacionar as transformações da sociedade brasileira aos protagonismos da sociedade civil após 1989” [EF09HI25] e “discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas [negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.] com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas” [EF09HI26]. Todas as habilidades indicadas pelo documento podem ser desenvolvidas ao longo da aplicação do roteiro, em conjunto com as aulas ministradas na escola.

Tendo o tema e os objetivos escolhidos, pesquise possíveis exposições ou espaços urbanos onde o trabalho possa ser realizado. O conhecimento prévio do professor é essencial. No caso dos museus, as instituições filiadas ao Instituto Brasileiro de Museus [IBRAM] possuem núcleos educativos e páginas na internet, que podem esclarecer dúvidas. Como professores devemos selecionar quais exposições gostaríamos de utilizar, uma vez que a maioria dos museus abrange recortes temporais amplos, o que esvazia o sentido do roteiro. Nossa proposta é que alunos e professores aprendam durante a visita, sendo assim, superamos a utilização ilustrativa de espaços educativos não formais. O museu como um templo, um observatório de passados imutáveis e fechados a questionamentos, é o melhor lugar para estimular o espírito crítico e o desenvolvimento de competências e habilidades nos nossos alunos? Nossa resposta é não. Desse posicionamento, surgiu a necessidade de construir um roteiro que dê ao museu status de fórum, um espaço de construção coletiva de narrativas e sensações.

Durante as aulas preparatórias a turma deverá ser dividida em grupos. Cada um deles será responsável por um tema, a ser desenvolvido no espaço de educação não formal. Nosso roteiro propôs uma divisão da turma em cinco grupos, a partir do Art. 5º da Constituição Federal, a saber: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Todo o artigo deveria ter sido previamente discutido com a turma e atividades de pesquisa devem ter sido realizadas. Solicitamos, ainda na escola, que cada grupo escolhesse uma cor, usando como critério a cor com a qual pensam no direito pelo qual são responsáveis. Apresentaremos a seguir o texto que compõe o roteiro aplicado, como exemplo de trabalho a ser desenvolvido.

I. Dinâmica inicial – Direitos e violações à olho nu. [20 minutos]
Posicione a turma na entrada principal do Museu da República, na Rua do Catete, lembrando-os de que a partir daquele momento a atividade pedagógica da turma foi iniciada. Indique que vocês estão na entrada do museu e peça que seus alunos observem o entorno, ou seja, lojas, pessoas, fachadas, transportes, animais, propagandas, etc. Absolutamente, tudo que estiver ao alcance dos olhos. Em seguida, faça algumas perguntas para a turma:
• O que vocês viram?
• Como se sentiram?
• Que direitos foram contemplados?
• Que direitos foram violados?
• As situações observadas são parecidas com as do bairro de origem da turma?
O objetivo é aguçar o olhar dos seus alunos, fazendo-os perceberem que tudo que os circunda é importante para a atividade e, sobretudo, que os direitos e suas violações estão em toda parte.

II. O Salão Ministerial [30 minutos]
Leve os alunos para o interior do museu, encaminhando-os diretamente para o Salão Ministerial. Deixe que a turma circule um pouco pelo ambiente, depois reúna-os perto da mesa e apresente as principais obras e aspectos do espaço. Explique as funções da sala ao longo do tempo, indicando marcas temporais de sedimentação da memória através da arquitetura, mostrando peculiaridades nas paredes e teto. Peça que os alunos observem o quadro Compromisso Constitucional. Pergunte:
• O que eles acham que está representado no quadro?
• O que mais chamou atenção deles na pintura?
• Que personagens têm centralidade na tela e quais estão em menor número?
• Por que os personagens estão dispostos assim?


Imagem 1: Compromisso Constitucional. Óleo s/tela, Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, 1896. [MUSEU DA REPÚBLICA].

Deixe que seus alunos observem a mesa e as pastas ministeriais, questione o grupo sobre as prioridades do governo, tomando como ponto de partida os títulos dos ministérios. Estimule a comparação com os ministérios e assuntos em destaque na atualidade. Finalmente, pergunte se o grupo ainda tem alguma dúvida, sinalizando o próximo passo do roteiro, a exposição Gabinete republicano de histórias controversas, não ditas e mal ditas.

III. Quando os objetos contam a história [50 min]
Leve a turma até a entrada da exposição, explicando a intencionalidade de sua criação, para isso, é possível utilizar o texto introdutório da primeira sala expositiva como fio condutor. Em seguida, leia para os alunos o cordel produzido pela professora-poeta alagoana Marlene Ramos, intitulado - Cidadania.

Após a leitura, questione se os alunos têm algum comentário a fazer sobre o cordel, esclarecendo qualquer questionamento. Entregue a cada um dos alunos uma fita, da cor escolhida por eles na escola para representar o grupo, junto a um alfinete, para que eles coloquem na blusa. Com os grupos divididos e identificados, ofereça uma ficha, que contenha as orientações pertinentes. Conforme os exemplos, abaixo:


Imagem 2: Ficha desenvolvida pelas autoras do trabalho.


Imagem 3: Ficha desenvolvida pelas autoras do trabalho.


Imagem 4: Ficha desenvolvida pelas autoras do trabalho.

Conforme o explicitado, anteriormente, as fichas são exemplos. O professor pode selecionar outros objetos para o seu trabalho, desde que forneça as imagens para os alunos, para fins de localização e pesquisa. Explique para os alunos que eles terão 40 minutos para circularem pelas salas da exposição. Deixe que conversem, fotografem e perguntem o que quiserem. Evite guiar os alunos dentro das salas, observe-os sem interferências desnecessárias, permita que eles se encantem ou surpreendam com a exposição.

IV. Mediação em foco [50 minutos]
Este é o momento de protagonismo dos alunos. Reúna os grupos, pedindo que cada um deles faça a sua apresentação. Destaque que eles podem fazer perguntas uns aos outros, da mesma forma que puderam interagir com você no Salão Ministerial. Cada grupo deverá ter no máximo 10 minutos para fazer a sua apresentação.

Esperamos que o roteiro auxilie positivamente seu trabalho. Destacamos a necessidade de levantar boas questões, utilizar o deslumbramento com a monumentalidade para salientar aspectos menos aparentes e estar aberto para ouvir o que os alunos têm a dizer. Não existe uma resposta correta, os alunos serão tocados pela exposição ou cidade de formas variadas. Podem surgir emoções inesperadas [espanto, encantamento, surpresa, revolta, curiosidade, afeto, alegria, tristeza], nenhuma delas é errada. Vocês estão em um ambiente de afetação dos sentidos, deixar-se afetar faz parte do exercício de conhecer e aprender com a materialidade.

Na proposta apresentada ao longo desse trabalho utilizamos o Museu da República como lugar onde os testemunhos materiais do passado podem ser observados pelos alunos. Mais do que a contemplação, propomos a articulação de saberes escolares e museais para o desenvolvimento de competências históricas. O aluno torna-se sujeito de sua aprendizagem, assumindo uma postura ativa na construção de seu conhecimento e narrativa, sendo mediado pelo professor, que atua como um facilitador dentro do museu. Como professor, o leitor pode utilizar as fichas como inspiração para propor outros problemas e temas aos seus alunos.

Desejamos oferecer aos estudantes uma oportunidade de ver os objetos para além de sua materialidade, refletindo sobre seu caráter simbólico e, questionando a fetichização da materialidade expositiva. Se “educar é garantir ao indivíduo condições para que ele continue a educar-se” [MENESES, 2000, p.94] enxergamos no roteiro proposto um caminho frutífero para educação e ensino de história, uma vez que não construímos uma proposta que fala sobre os objetos, mas que explora a materialidade como disparadora de narrativas a partir dos objetos.

Referências
Me. Priscila Lopes d’Avila Borges é doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana. Atualmente, desenvolve pesquisas na área do Ensino de História e Educação Museal, fomentadas pela FAPERJ.
Me. Thaísa Muniz atua como professora de História e realiza pesquisas no campo do Ensino de História em espaços não-formais.

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2011.
BRASIL. Constituição [1988]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
CHAGAS, Mário de Souza. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In: TOLENTINO, Átila Bezerra [Org.]. Educação patrimonial: educação, memórias e identidades. João Pessoa: Iphan, 2013.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras et al. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/Museu Imperial, 1999.
MEC. Base Nacional Comum Curricular.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/bncc-20dez-site.pdf. Acesso em 24 de janeiro de 2020.
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões. In: Ciência e Letras, n. 27, 2000.
MUSEU DA REPÚBLICA, http://www.museudarepublica.gov.br, Acesso em 18 de janeiro de 2020.

2 comentários:

  1. PARABÉNS PELO TEXTO! AO DEFENDER A SENSIBILIZAÇÃO PRÉVIA DOS ALUNOS, VOCÊS INDICAM ALGUM TIPO ESPECÍFICO DE OBJETOS OU MÉTODO?
    Ass: LUAN DE S.BATISTA

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    1. Bom dia Luan. Obrigada pelo elogio! Defendemos que os professores utilizem objetos que tenham relação com a realidade dos alunos. Se você partir de um objeto que pertença ao mundo material do aluno, o referencial dele será mais forte, e você terá mais chances de sucesso. Quanto ao método, separe um tempo apenas para essa provocação inicial, e garanta que seus alunos saibam o que vão fazer no museu e tenham uma ideia do que podem encontrar por lá. Isso ajuda na localização prévia deles, e torna a atividade mais produtiva.
      Priscila Lopes d'Avila Borges

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